Título: Número de processos sobe quase 200% em 13 anos
Autor: Cristine Prestes
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F29

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro passou por inúmeras mudanças. De pouco mais de cinco milhões de processos que entravam na primeira instância da Justiça estadual, federal e trabalhista em 1990, passou-se a mais de 14 milhões de ações no ano de 2003, um crescimento de cerca de 180% em pouco mais de dez anos. Mas tanto as despesas do Judiciário quanto o número de juízes não acompanharam essa evolução. De acordo com o Diagnóstico do Poder Judiciário feito pelo Ministério da Justiça no ano passado, os gastos com a Justiça brasileira alcançaram de R$ 25,3 bilhões em 1995 frente R$ 28,5 bilhões em 2002 - aumento de apenas 12%. O resultado desse quadro é um verdadeiro nó no sistema judiciário do país, que provocou um acúmulo de milhões de processos à espera de julgamento. O trágico cenário somente se agravou durante os 13 anos de discussão da reforma do Judiciário no Congresso Nacional. E as consequências dele atingem tanto a população, que não consegue alcançar seus direitos, quanto a economia do país, que sofre com a insegurança jurídica que retarda e afasta investimentos. Em 8 de dezembro do ano passado veio o primeiro alento para a situação de "quase caos" do Judiciário brasileiro: a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, que estabeleceu a reforma do Judiciário. A reforma constitucional do poder incluiu, entre os principais pontos, a adoção da súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal (STF), que fará com que as instâncias inferiores da Justiça tenham de seguir os mesmos entendimentos da corte superior em casos idênticos que já tenham sido sumulados; e a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão composto por membros do Judiciário, legislativo e sociedade civil que fará o chamado controle externo do Judiciário. Embora a reforma constitucional do Judiciário tenha sido comemorada por diversos setores, a avaliação de advogados, magistrados e acadêmicos é de que ela, por si só, não resolve o principal problema da Justiça brasileira: a morosidade nos julgamentos. De acordo com o professor Ary Oswaldo Mattos Filho, diretor da Escola de Direito de São Paulo (Edesp) da Fundação Getulio Vargas (FGV) e titular do escritório Mattos Filho, embora alguns pontos da reforma possam vir a desafogar o Judiciário, outras duas vertentes de mudanças podem surtir efeitos mais rapidamente: as alterações nos códigos de processo e na gestão dos tribunais, já em andamento. Segundo Mattos Filho, a súmula vinculante criada com a reforma do Judiciário terá o condão de desafogar o Supremo, que, na medida em que passar a editar súmulas, fará com que as instâncias inferiores passem a julgar mais rapidamente os casos sumulados. "As súmulas vinculantes atingirão principalmente processos tributários, previdenciários e os relativos a direitos dos funcionários públicos." As três matérias, inclusive, representam boa parte dos processos que tramitam nas cortes brasileiras. O Diagnóstico do Poder Judiciário produzido pelo Ministério da Justiça monstra que o poder público é parte em 79% dos processos autuados no Supremo. Só a Caixa Econômica Federal (CEF) responde por 44% deles, especialmente em função de planos econômicos que alteraram a forma de correção dos depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Outro estudo, produzido pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), identificou que 80% dos processos e recursos hoje nos tribunais brasileiros têm a administração pública como responsável. Mas é a reforma processual - em tramitação no Congresso Nacional por meio de 23 projetos de lei que alteram pontos importantes do Código de Processo Civil e de Processo Penal e reduzem o número de recursos possíveis - que Mattos Filho considera essencial para garantir maior agilidade à Justiça. "A redução das atividades processuais tende a fazer com que as decisões passem a ser mais rápidas." O mesmo estudo da AMB que demonstrou que o poder público é o grande demandante do Judiciário brasileiro também identificou nada menos do que 13 tipos de recursos no sistema judicial brasileiro, entre agravos, embargos e apelações. Um exemplo hipotético citado pelo presidente da entidade, o juiz Rodrigo Collaço, mostra que um simples caso de uma microempresa que tenha dois cheques indevidamente devolvidos pelo banco. O processo por danos morais e materiais pode demorar sete anos e quatro meses em tramitação na Justiça até que seja resolvido. Um outro exemplo, real, ilustra bem a demora no julgamento das causas em função do sistema recursal brasileiro. O primeiro processo de cobrança de correção monetária do FGTS relativo aos planos econômicos foi impetrado na Justiça Federal em 1992 e continuou tramitando até 2001, quando o governo promoveu o acordo para o pagamento dos correntistas. "A reforma do Judiciário em nada altera os mecanismos processuais com os quais o juiz é obrigado a lidar e que, efetivamente, representam as verdadeiras dificuldades para uma prestação de serviços célere e eficiente", diz o juiz Rodrigo Collaço, presidente da entidade. Mas, para o advogado Celso Cintra Mori, sócio e integrante do grupo executivo e do comitê diretivo do escritório Pinheiro Neto Advogados, há uma excessiva preocupação com a dinâmica do processo em detrimento de um outro ponto, mais relacionado à gestão da Justiça. "No Brasil, a relação entre o número de habitantes e de juízes é muito maior do que em países desenvolvidos", diz. A título de comparação, enquanto se tem 7,73 juízes por grupo de dez mil habitantes no Brasil, há 28 na Alemanha. "O Judiciário é um serviço público e na prestação dos serviços precisa ter uma proporção entre equipamento e demanda", afirma Mori. "E a reforma não mexeu com isso." O problema surgiu justamente a partir da Constituição de 1988, com o aumento da demanda do Judiciário de forma desproporcional ao aumento de sua estrutura. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, levou à Justiça parte da população que até então desconhecia ou mesmo não tinha direitos; sucessivos planos econômicos fracassados acabaram por embolsar parte da renda da população, que, descontente, foi contestá-los judicialmente; e a carga tributária foi se tornando maior e mais complexa, gerando inúmeras ações. A adequação do Judiciário à demanda atual pode vir com a reforma na gestão do Poder Judiciário, incentivada pelo Ministério da Justiça e em andamento em alguns órgãos do próprio poder. O próprio Conselho Nacional de Justiça surge com a tarefa de criar indicadores para avaliar o grau de produtividade das diversas instâncias da Justiça e, a partir daí, tomar providências. O presidente do Supremo, ministro Nelson Jobim, estima um prazo de cinco anos, a partir da criação do conselho e desses indicadores, para que se tenha efeitos práticos na redução da morosidade do Poder Judiciário. Para Armando Castelar Pinheiro, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não há como estimar o tempo que as reformas podem demorar para surtir efeitos. Em um estudo realizado em 2004, Castelar sustenta que a ineficiência do Judiciário resulta em custos elevados e a forma como afeta o desempenho econômico passa pelo progresso tecnológico, eficiência das empresas, investimentos e qualidade da política econômica. Em um estudo sobre o impacto da Justiça nas empresas portuguesas, de 2003, estimou-se que a melhoria na eficiência do Judiciário levaria ao aumento de produção de 13,7%, elevação no nível de emprego de 9,4% e aumento do investimento de 10,4%. Com base na pesquisa, Castelar estima que, no Brasil, a melhoria do sistema judiciário a níveis de primeiro mundo faria a taxa de crescimento do PIB brasileiro ser 25% mais alta.