Título: Ciranda financeira simbiótica
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 03/05/2005, Brasil, p. A2

Vencido o primeiro terço deste ano de 2005, que está longe de ser o "anno humanae salutis", podemos ter uma idéia de como ele terminará se os poderosos não produzirem uma catástrofe. Analisemos o que se espera de 2005, comparando-o com o período 2000-2004. O gráfico nº 1 revela as variações do Produto Interno Bruto (PIB) das quatro economias que controlam as finanças mundiais. Como vemos, as indicações são de uma pequena variação para menos, mas não muito diferente do que já ocorreu no quarto trimestre de 2004. As esperanças de crescimento mais robusto concentram-se nos países emergentes, em particular na China, Índia e Rússia (8,5%, 6,7% e 6,0%, respectivamente). Infelizmente, dos BRICs - os "países-esperança" (Brasil, Rússia, Índia e China) - apenas o Brasil parece condenado, por sua política monetária desfocada, a assistir a uma redução da sua taxa de crescimento.

Os avanços para flexibilizar o mercado de trabalho da Eurolândia são muito lentos, de forma que com crescimento menor em 2005, não há possibilidade de que o seu problema do desemprego seja minorado. Ele está estabilizado em 9%. Parece impossível, mas é por isso que alguns economistas (do Banco Central Europeu) crêem (do verbo "crer" = ter fé) que este é o novo número da Nairu, a taxa de desemprego que não acelera a inflação! O gráfico nº 2 revela a taxa de inflação das mesmas quatro economias. Notamos que não se espera uma aceleração das taxas de inflação. As projeções estão dentro dos limites estabelecidos desde o final de 2001. Nos EUA, espera-se que a ação do FED reduza a taxa anualizada de 3,4%, no último trimestre de 2004, para 2,5%, na média de 2005. No Japão, apenas se espera que a taxa de inflação continue próxima de zero positiva.

Olhando com relativa distância e decorridos um terço do ano, o sentimento é que 2005 será um pouco pior do que 2004, mas nada que possa produzir uma tragédia. Os emergentes que selecionarem estratégia conveniente e mantiverem seu poder de competição (o que o Brasil não está fazendo), certamente crescerão e aumentarão o seu "share" no mercado internacional. Há, entretanto, um risco no ar. Como disse Alan Greenspan no dia 21 de abril, no Comitê de Orçamento do Congresso dos EUA, o déficit fiscal americano "está num caminho insustentável, que pode levar o país à estagflação ou a coisa pior"... De fato, em 2000 (último ano de Clinton) o superávit fiscal foi de quase US$ 240 bilhões. No primeiro ano de Bush, ele foi reduzido para menos de US$ 130 bilhões. E a partir de 2002 foi a "farra do boi": com a previsão de US$ 400 bilhões de déficit para 2005, os últimos quatro anos revelam que o governo Bush produziu um déficit acumulado da ordem de US$ 1,4 trilhão! Na sua nova posse (reeleito em 2004), Bush prometeu, e seu secretário do Tesouro jurou, que o déficit seria reduzido pelo menos à metade em 2009, mas até agora não se viu nenhuma medida nesse sentido. Uma coisa é certa: depois de quatro anos com déficit fiscal acima de 4% do PIB alguma coisa tem que ser feita. Outro problema grave enfrentado pelo EUA é que seu déficit em conta corrente anda em torno de 6% do PIB e o seu financiamento está envolvido numa "ciranda financeira simbiótica" com os Bancos Centrais asiáticos. Estes, com o saldo em conta corrente de seus países, compram papéis do Tesouro, o que financia o déficit americano. Trata-se de uma espécie de "moto-contínuo", que viola a primeira lei da termodinâmica e, portanto, não pode durar para sempre. A dívida do governo federal americano atingiu, em 31/12/2004, US$ 6,7 trilhões (65% do PIB). Desse total, US$ 1,95 trilhão (26%) está nas mãos de estrangeiros, em particular os bancos centrais japonês e chinês. Estes, recentemente, começaram a desmontar lentamente suas posições, substituídas pelos "hedge-funds". Não é à-toa que o grande Paul Volcker, que liquidou a inflação americana nos anos 70, saiu de seu silêncio para dizer: "No conjunto, as circunstâncias me parecem tão perigosas e difíceis de solucionar como algumas de que me lembro, e são muitas. O que realmente me preocupa é que parece haver pouca disposição ou capacidade para fazê-lo."