Título: A bola fora da hepatite C
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 09/03/2010, Brasil, p. 10

Campanha liderada por tricampeão mundial e pela Sociedade Brasileira de Hepatologia alerta para casos da doença em ex-jogadores de futebol por conta do uso de complexos vitamínicos em seringas

Trinta pessoas, duas seringas e três agulhas. Para esterilizar o material, água fervente apenas. Colocavam uns dois minutinhos na panela, mas era muita gente para tomar os complexos vitamínicos que todos nós usávamos naquela época, lembra Nilson Pereira Gomes. A cena se repetiu nos vestiários, antes de treinos e jogos, durante os 10 anos como jogador de futebol. Hoje diagnosticado com o vírus da hepatite C, o ex-craque que brilhou no Palmeiras, no Botafogo e no Vitória, na década de 60, participa de uma campanha que será lançada em maio pela Federação das Associações de Atletas Profissionais, cujo objetivo é alertar o grupo para o risco da hepatite. Pouquíssimos escapam de ter contraído, constata Nilson. O problema é que muitos temem ser identificados como pessoas que fizeram doping, mas a aplicação dessas substâncias era completamente usual naquele período.

A ideia da campanha, que conta com o apoio da Sociedade Brasileira de Hepatologia, surgiu da explosão de casos nas redes de saúde. O presidente da entidade, Raymundo Paraná, conta ter notado uma alta frequência de ex-atletas, especialmente jogadores de futebol, no ambulatório onde atende, na Universidade Federal da Bahia. Diante disso, comecei a solicitar que os antigos colegas desses pacientes fossem examinados também. E o resultado foi positivo em muitos casos para a hepatite C, transmitida basicamente pelo uso coletivo de instrumentos contendo sangue de outra pessoa, explica Paraná. De acordo com o médico, o diagnóstico tardio é comum: A doença é geralmente silenciosa e só dá sinais depois de 20, 30 ou 40 anos.

Dessa forma, os médicos chegaram à conclusão de que o Brasil tem uma peculiaridade em relação à população de risco para a doença. Além dos grupos internacionalmente apontados como vulneráveis, como os usuários de drogas injetáveis, pessoas que fizeram transfusão antes de 1994 ou que se tatuaram em ambientes inseguros, os ex-atletas, sobretudo os que atuaram nas décadas de 70, 80 e 90, entraram nessa lista, afirma Paraná. Ele ressalta que era muito comum naquele período o uso de drogas lícitas injetáveis, muitas vezes com material mal esterilizado. Não se tinha essa cultura do descartável, até porque não se sabia muito sobre as doenças transmitidas pelo sangue, explica o médico. Embora o alerta seja dirigido a todos os ex-atletas, jogadores de futebol são os mais propensos a terem sido contaminados, adverte o hepatologista.

Presidente da Federação das Associações de Atletas Profissionais e tricampeão mundial de futebol, Wilson Piazza, ressalta que o alerta será dirigido não só aos ex-esportistas, mas à população em geral. Muito se fala em dengue, gripe suína, mas as pessoas se esquecem que a hepatite é uma doença séria e quanto mais cedo descoberta, melhores as chances do indivíduo, ressalta. Embora o formato final da campanha não esteja delineado, a ideia do ex-jogador que integrou tanto a seleção brasileira de 1970 quanto a de 1974, é contar com a adesão de ídolos do futebol daquele período para chamar a atenção da sociedade e do governo. Tentaremos audiências em ministérios e com o presidente da República. Talvez, juntos, possamos divulgar melhor a campanha, afirma. Nomes de peso, como Pelé e Rivelino, são cogitados. A manifestação deve ocorrer em 19 de maio, Dia Mundial de Combate às Hepatites Virais. O tipo C mata cerca de 460 pessoas por ano no Brasil.

Álcool

Segundo Paraná, além dos vestiários de atletas, o uso de injeções com o material higienizado precariamente era comum também no carnaval. As pessoas bebiam e acreditavam que aplicar insulina amenizaria os efeitos do álcool, explica Paraná.

Aplicações de anestésicos e corticoides nas articulações eventualmente doloridas antes dos jogos também eram corriqueiras. Garrincha se submetia constantemente a esse tipo de tratamento.

Muitos relatos de membros da Sociedade Brasileira de Hepatologia chegaram à cúpula da entidade depois das primeiras reuniões sobre a campanha, segundo Paraná. Recebemos três e-mails em dois dias. Um profissional do Sul nos avisou que estava tratando 71 ex-jogadores de futebol. Um do Mato Grosso têm 30 ex-atletas doentes. E em Fortaleza, no Ceará, um médico tem seis pacientes que também jogaram futebol no passado, lembrou Paraná.

Mais pessoas vacinadas

Depois de começar 2010 com um novo protocolo para tratamento da hepatite B, incluindo três medicamentos, o Ministério da Saúde expandiu a população autorizada a tomar a vacina contra a doença gratuitamente na rede pública de atendimento. Antes restrita à faixa etária de 11 a 19 anos, a imunização vai beneficiar grupos específicos, tais como gestantes, doadores de sangue, manicures e homossexuais, independentemente da idade. A decisão saiu em 2 de maio.

Para Ricardo Gadelha, coordenador do programa de hepatites virais do Ministério da Saúde, a ampliação ajudará a evitar a proliferação do vírus B, diagnosticado em 11 mil pessoas por ano, em média. Em nove anos, segundo ele, 4.200 pessoas morreram vítima da doença nos últimos nove anos, transmitida basicamente via relação sexual.

A hepatite B é assintomática. Então, muitas vezes, o paciente chega com uma cirrose ou uma deficiência hepática muito grande, explica Gadelha. Quanto ao novo protocolo, o coordenador ressalta que ele foi fruto de um consenso entre especialistas. Pesquisas internacionais já apontavam que o vírus teria criado resistência ao tratamento comumente usado nos últimos anos, explica. Gadelha diz que o Ministério da Saúde já fez a compra dos novos remédios para abastecer estados e municípios durante 2010 inteiro. A distribuição já começou, todos os estados receberam.

O presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, Raymundo Paraná, que participou da modificação no protocolo, ressalta que há queixas em várias partes do Brasil de falta do medicamento, mas não responsabiliza o governo federal. Aí é preciso haver o comprometimento dos gestores locais também. Se eles não estiverem sensibilizados, dificilmente o paciente será atendido, afirma. (RM)

É preciso haver o comprometimento dos gestores locais também. Se eles não estiverem sensibilizados, dificilmente o paciente será atendido

Raymundo Paraná, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia

Pelo país

55 - Ex-jogadores de futebol com hepatite C são tratados atualmente no ambulatório da Universidade Federal da Bahia

777.714 - Casos de hepatite (A, B, C e D) registrados no Brasil de 1999 a 2008

270 - A média de casos de hepatite (A, B, C e D) registrados por dia no país

Caso a caso

Veja quais são os grupos contemplados com a vacina

Gestantes após o primeiro trimestre de gestação

Trabalhadores da saúde

Bombeiros e policiais (militares, civis e rodoviários)

Carcereiros

Coletadores de lixo hospitalar e domiciliar

Doadores de sangue

Homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais

Pessoas reclusas (em instituições psiquiátricas, instituições para menores,

Forças Armadas, entre outras)

Pedicure, manicure e podólogo

População de assentamentos e acampamentos

Indígenas

Potenciais receptores de transfusões e sangue ou politransfundidos

Profissionais do sexo

Usuários de drogas injetáveis, inaláveis e pipadas

Portadores de DST

Caminhoneiros