Título: As eleições diretas e a agenda social do regime democrático
Autor: Miguel Reale Júnior
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2005, Opinião, p. A10

Neste mês, serão passados 21 anos da frustrante derrota da Emenda Dante de Oliveira que visava à implantação das eleições diretas, como forma de demolir a ditadura. Muito se fala sobre qual teria sido a primeira manifestação pública em favor das eleições diretas. Quero trazer à tona, então, fatos que restam esquecidos e em especial o registro de que o tema das diretas vinha amarrado à discussão acerca da crise econômica pela qual passava o país, com arrocho salarial e desemprego. Peço escusas por utilizar no artigo a primeira pessoa, mas é a forma mais fácil de relatar os fatos a seguir. Em junho de 1983, passei a ser o presidente de fato da Fundação Pedroso Horta e nessa condição fui chamado por dr. Ulysses, que pretendia realizar em agosto um ato público em favor das eleições diretas. Ulysses ficou doente, Teotônio Villela assumiu a presidência do partido. Após retiro em uma fazenda em Araçatuba, já agosto, retomaram-se as conversas sobre o ato a se realizar tendo por tema as eleições diretas. Dizia-se que Ulysses estava em sua agonia política, mas ressurgindo, tal como fênix, das cinzas. Ulysses, em agosto, chamou-me novamente à sua residência e pretendia realizar um encontro de envergadura nacional reivindicando eleições diretas e outras questões de cunho econômico. Como era de seu feitio, foi anotando em folha de bloco de notas da Câmara dos Deputados os planos a serem implementados, e cujo fac-símile encontra-se publicado na revista "Economie et Culture" n° 11 (junho/agosto de 1994, pag. 37). Nesta folha pode-se ver anotado, nas garatujas do dr. Ulysses, os seguintes dados: "dia 18 (sexta) de setembro. Local: 10.000 pessoas. Temas: eleições diretas, moratória, desemprego, dia 18 sexta, 19 sábado, 20 domingo, encerramento". O dr. Ulysses assinalou, também, as pessoas que deveriam estar presentes: "Dante de Oliveira, presidente nacional (Ulysses) presidente regional (Fernando Henrique), Montoro, presidente da UNE, líder operário, presidente Henrique Santillo, (presidia em nível nacional a Fundação Pedroso Horta)". Anotava também que deveria haver movimentação de caravanas do interior e de outros estados. Guardei esse papel de notas, no qual ficaram registradas, com minha letra, outras presenças a serem providenciadas, bem como o nome dos participantes de debate econômico que deveria ocorrer. Estão assinalados os seguintes nomes: "empresários, Antonio Ermirio e Bardella, líderes coordenadores dos debates, Freitas e Máximo. H. Lucena coordena o encerramento. Celso Furtado, Belluzzo, João Manoel, José Serra, Conceição, Lessa. Secretários de Planejamento: São Paulo, Minas, Paraná". Comecei a procurar local para a manifestação: inicialmente o Pacaembuzinho, com capacidade para 2.000 pessoas; depois, pensando em número maior de participantes, o salão do clube Pinheiros para 5.000 pessoas e, por fim, o estádio do Palmeiras para 10.000 pessoas.

Crescimento, criação de mercado interno e desemprego são temas tão atuais com eram no início da década de 80

Optou-se ao final, com receio de uma vinda reduzida de público, em convocar a manifestação para o plenário da Assembléia Legislativa de São Paulo. Uma carta oficial do partido, assinada por Ulysses, presidente nacional, Fernando Henrique Cardoso, presidente regional, e por mim como diretor da Fundação Pedroso Horta foi enviada a todos os membros do partido, convocando para participarem do Encontro "Fala Brasil", em favor das eleições diretas e contra os rumos da economia nacional. A carta, por mim escrita e discutida com os principais signatários, (fac-simile igualmente publicado na revista Economie et Culture) tinha o seguinte teor: "Fala Brasil - O PMDB lançou o grito Basta, legitimado por 20 milhões de votos recebidos em todos os estados da Federação nas últimas eleições: basta ao Decreto 2.045 (que reduzia a correção salarial); basta ao desemprego; basta à crise e à recessão; basta de FMI. Em primeiro de outubro, às 15h, no Plenário da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, a direção nacional e regional do PMDB, juntamente com a Fundação Pedroso Horta, promoverão o Encontro 'Fala Brasil', ao qual comparecerão as lideranças partidárias reivindicando: eleições diretas; moratória; retomada do crescimento; restabelecimento do mercado interno. Em 2 de outubro, às 15h, também na Assembléia Legislativa, a saída para a crise econômica será debatida por Celso Furtado, João Manuel Cardoso de Mello, José Serra, Luciano Coutinho, Paulo Renato de Souza". Em meados de setembro, assumira o cargo de Secretário da Segurança Pública, mas continuei a me encarregar da organização do evento. No dia 1° de outubro fui a um almoço na casa do senador Severo Gomes, no qual estavam presentes os governadores Tancredo Neves, José Richa, Pedro Simon e Humberto Lucena. Lá se ponderava acerca da necessidade de logo se reunirem os governadores para planejar a campanha das diretas, o que sucedeu quinze dias depois em Foz do Iguaçu. Terminado o almoço, seguimos para o ato na Assembléia Legislativa. No meio da tarde, por volta das 16h, teve início o encontro que reuniu efetivamente as lideranças partidárias e alguns líderes da sociedade civil. Nessa reunião lançou-se um grito pelas eleições diretas, mas a presença de público foi um fracasso, não havia, tirando os próceres partidários, mais de cem pessoas. Comentei com o dr. Ulysses, na ocasião, o meu desapontamento com a presença tão diminuta de pessoas, mesmo após a convocatória enviada, mas Ulysses, com seus vivos olhos azuis brilhando, sorriu a apenas me disse: "Encontramos o filão, estamos no bom caminho". Percebi que estava diante de um visionário que via o que eu não via e no qual era preciso acreditar. No dia 2 de outubro, houve a reunião dos economistas para discutir a saída da crise econômica. Revelava-se uma intensa preocupação com a compressão salarial e a urgência na retomada do crescimento e do emprego, diante da recessão que se iniciara em 1981. Quero ressaltar que, na convocação da reunião idealizada por Ulysses, o tema das eleições diretas casava-se com a discussão sobre a crise econômica. Ao lado da luta pela cidadania política, havia a reivindicação de retomada do crescimento, fim do desemprego, criação de um mercado interno, com vistas à justiça social. Caminhamos de lá até hoje na raia da liberdade política, mas a organização política ainda deita raízes na estrutura pensada em 1946, no que tange ao sistema eleitoral e partidário, como analisei no último artigo. Nesse campo, pouco avançamos. Na raia da justiça social, no entanto, a defasagem é ainda maior: retomada do crescimento, desemprego, criação de um mercado interno são temas tão atuais com eram no início da década de 80, em plena ditadura. Nesse campo, diante da pobreza atual nas periferias ou morros das grandes cidades, é preciso reconhecer que nada avançamos.