Título: Virulência do PSDB busca evitar sítio
Autor: Wanderley Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 14/10/2004, Política, p. A-6

Em seu primeiro mandato, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez o Congresso aprovar 16 emendas à Constituição. Média de uma a cada três meses durante quatro anos ininterruptos. Dispunha de folgada maioria para tanto. A votação em primeiro turno na Câmara dos Deputados da emenda da reeleição, por exemplo, ocorrida em 13 de agosto de 1998 e sob suspeição de compra de votos parlamentares, aprovou a emenda por 398 votos favoráveis à coalizão parlamentar governista (PSDB, PFL, PMDB, PPB, PTB) contra os 98 colhidos pela minoria oposicionista (PT, PCdoB, PPS, PSB, PDT). Um total de 90 cadeiras a mais do que os necessários três quintos de votos para aprovação de emendas. O governo comandava quase tantos votos em excesso à exigência constitucional quanto os da oposição brancaleone. A mais desenfreada e truculenta reforma constitucional de toda a história independente do país. Que me lembre, não existe nada parecido na história de nenhuma democracia nos tempos modernos. O espetáculo de desconstrução constitucional foi aplaudido por toda a imprensa escrita, falada e televisada. Nenhum editorial criticou a truculência dos métodos nem o dogmatismo iluminista das reformas. Tampouco se recorreu à experiência de outras democracias, cautelosas quanto à velocidade no trâmite das emendas e atentas à necessidade de reconciliação política, pois cada proposta de reforma constitucional implica suspensão do pacto vigente para discussão de tópicos desse mesmo pacto. Valer-se de circunstancial poder majoritário para sovar a minoria equivale a interpretar os três quintos de votos exigidos como convite à exibição de força antes que sensato apelo à negociação entre opiniões concorrentes. O governo e seus aliados ideológicos preferiram regredir à concepção jurássica de que a democracia se esgota na consagração da maioria "com todo o poder do Estado", como aconselhava o conservador Edmund Burke, no século XVIII, do que optar pela civilidade da concepção pós-Stuart Mill em que democracia é, sobretudo, um sistema de proteção de minorias sem poder de veto. Foram oito anos de festa ultra-majoritária sob a complacente vigilância dos meios de comunicação. Criticáveis uma e outra, mas aceitáveis.

Vitória tucana concentra-se em S. Paulo

Intriga, contudo, a acolhida ao tradicional insubordinado refrão de que o governo do presidente Luiz Inácio se encaminha para ultrapassar o limite de legitimidade no exercício do poder. A hipótese é tão estapafúrdia que dá margem à dúvida de que se trate somente de estratégia eleitoral. Esperta, como campanha, a propaganda é golpista, quando desenvolvida nada mais nada menos do que em meio a uma eleição disputadíssima, com uma centena de milhões de eleitores espalhados por mais de 8.000.000 km2, um poderoso e ativo sistema judiciário, e sem que a Justiça Eleitoral tenha sido solicitada para inspecionar sequer o Estado da Flórida. Os fatos nus e crus são os seguintes: nas eleições municipais de 2000 o PSDB obteve 28,7% de sua votação total no Estado de São Paulo; no primeiro turno de 2004, 43,3% de todos os votos que conquistou foram nesse Estado; em 2000, o PSDB precisou somar a votação obtida em quatro Estados (São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Ceará) para alcançar pouco mais de 50% de sua votação total; em 2004, só com São Paulo, Minas e Ceará chegou a 60,5%, e a 66,5% se o Paraná incluído. Os Estados em que conseguiu mais votos do que o PT foram Ceará, Paraná, São Paulo, Pará, Goiás, Maranhão, Rondônia Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas, Amazonas e Roraima. Já o PT chegara a 51% de seus votos, em 2000, só com a contribuição de São Paulo (40%) e Rio Grande do Sul (11%); em 2004, a contribuição de São Paulo baixou para 33% do total de votos do partido. Das seis cidades de mais de 200 mil eleitores em que o PSDB foi vitorioso, quatro foram em São Paulo, enquanto das quatro ganhas pelo PT, uma foi em São Paulo, uma em Minas Gerais, outra em Pernambuco e outra em Sergipe. De outras 20 grandes cidades em que o PSDB disputará a prefeitura, nove (45%) são paulistas e quatro estão no Nordeste. Entre as 24 em que o PT concorre, seis (25%) estão em São Paulo, quatro no Paraná, três no Rio Grande do Sul, duas no Espírito Santo, duas no Rio de Janeiro, uma no Ceará e outra em Minas. A razão do espalhafato tucano está na possibilidade de ficar quase sitiado em São Paulo e de ir disputar o Nordeste e o Norte com o PFL e o PMDB. Uma vitória paulistana, pelo menos, disfarçaria.