Título: No escuro
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 09/05/2005, Brasil, p. A2

O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, disse que se casou mais ou menos virgem. O deputado não viu "Kinsey - Vamos Falar de Sexo", mas ainda está em tempo. Antes que fique mais ou menos grávido. O filme conta a história do biólogo americano Alfred Kinsey. De seus tormentos e coragem. De seu trabalho revolucionário sobre a tirania dos tabus sexuais, que o segredo e a desinformação fortalecem. Maravilha de filme. Mostrar como trazer à luz o que se faz no escuro é o primeiro passo para uma vida melhor. Os princípios da transparência e da confiança se aplicam tanto à felicidade do casal quanto ao bom funcionamento da economia e da política. Mas são poucas as chances de um preconceituoso empedernido apreciar essa lição. O cérebro de Severino é mais antigo que o da metade da população americana, que, em 1970, 18 anos depois da publicação do "Relatório Kinsey", ainda acreditava que o controle de natalidade não deveria ser discutido em aulas de educação sexual e que os homossexuais não tinham direito a suas preferências. O presidente da Câmara, mergulhado na defesa do nepotismo, não parece ter idéia dos deveres do deputado federal, do significado das reformas, da separação entre o público e o privado. Como ele, boa parte dos políticos brasileiros parece decidida a dinamitar a confiança no funcionamento da nossa democracia. Faz promessas que não cumpre. Usa recursos públicos para a troca de favores. Esquece o decoro. E, assim procedendo, solapa a confiança que depositamos no governo e no regime democrático. No seu tempo, Confúcio dizia que o governante precisava de três elementos para se manter no poder: armas, comida e a confiança dos súditos. O governante poderia passar sem os dois primeiros itens, mas estaria condenado sem o último. O princípio ainda vale: sem a confiança do cidadão, o governo não funciona e o sistema capitalista entra em pane. Como todo sistema de garantias é, por necessidade, incompleto e não existe resposta satisfatória para "quem vai supervisionar o supervisor", a democracia e o capitalismo dependem não apenas de contratos e do sistema judiciário. Dependem também do capital social, isto é, da confiança que depositamos no nosso vizinho, nos nossos políticos e no regime. Confiança se dá sem garantias. Portanto, o mentiroso às vezes nos engana e leva a melhor. Mas a sociedade não funciona se o engodo se torna a regra geral. O exemplo do político constrói (ou destrói) o capital social. O presidente Lula, por exemplo, erra quando começa a campanha eleitoral antes da hora e faz promessas para 2008, esquecendo que "está" presidente desde 2003 e tem um mandato a cumprir até o final de 2006. "O amanhã é hoje", lhe diria Martin Luther King. O presidente não pode prometer para depois o que deve fazer agora.

Alguns incentivos persistem por inércia

Parte do que precisa fazer é defender a propriedade privada contra o Estado que usurpa e gasta em excesso. Dedicar-se outra vez às reformas da Previdência e tributária. E abrir mão do ativismo fiscal se quer ver o BC reduzir a taxa Selic. Existem várias explicações para a resistência inflacionária. Elas se complementam. Tanto o mix da política fiscal e monetária é ruim, quanto a indexação em contratos contribui para a inércia da inflação. Rever os contratos requer negociação e cuidado para não solapar a confiança no regime. Rever o mix das políticas fiscal e monetária é mais urgente. O BC aumenta a Selic para aumentar a taxa de juros de empréstimos a consumidores e investidores. A resposta do consumo ao aumento da taxa de juros é ambígua, como mostra boa parte dos estudos sobre consumo e poupança no Brasil e no resto do mundo. O aumento das taxas de juros reduz a demanda agregada e o nível de atividade da economia porque reduz o investimento. No Brasil, persiste o mito de que um aumento da demanda agregada advindo do aumento dos gastos de investimento não teria efeito inflacionário. O argumento está equivocado porque o impacto do aumento dos gastos de investimento pode ter um efeito multiplicador sobre a procura de bens e serviços. Por outro lado, não temos uma boa estimativa do tamanho do impacto do aumento do estoque de capital sobre o PIB potencial ou do tempo necessário para esse impacto. Conclusão? Um aumento da Selic reduz o investimento e o nível de atividade e desloca recursos para os gastos do governo. Para controlar o nível de atividade (como o BC deseja) sem reduzir os investimentos (como o governo diz que deseja), a solução seria cortar gastos do governo em vez de aumentar a Selic. Aumentar a renúncia fiscal e os empréstimos do BNDES como forma de evitar o impacto do aumento da Selic sobre os investimentos é uma política oposta à do BC. A combinação é ruim porque tanto o aumento da Selic quanto a renúncia fiscal contribuem para a piora da situação fiscal. Em 2005 a renúncia fiscal deve crescer quase 13%, atingindo R$ 27 bilhões (Valor, 29/4). Sua maior parte se dirige à indústria e comércio. Esse ativismo fiscal está na raiz dos nossos problemas. Alguns incentivos, inventados na década de 70, persistem por inércia e contrariam o princípio básico da política industrial, o de que um incentivo deve durar apenas o tempo que permite à empresa aprender fazendo. O contrário acontece porque, uma vez criada a proteção, não há Hércules que consiga desmontá-la. Quem diz que chegou a hora de o governo cuidar da ampliação da oferta usa uma linguagem cifrada que, na fala transparente de Kinsey, se traduz por "quero mais renúncias fiscais". A justificativa de ampliação da oferta para controlar a inflação é o velho engodo dos estruturalistas. Se existe preocupação com recessão, melhor seria que o BC deixasse de aumentar a Selic.