Título: Inesperada aliança quer votos do atraso
Autor: Wanderley Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2005, Política, p. A6

Bastou um encontro entre Anthony Garotinho e Fernando Henrique Cardoso para que a dose de artilharia da mídia ficasse reduzida a um décimo do normal. Segmentos da conversa entre ambos foram transcritos com simpatia e até uma observação sociologicamente interessante, atribuída ao ex-presidente, foi glosada. Ele teria comentado com Anthony Garotinho, o qual concordou, que no Brasil disputava-se o poder para liderar o atraso. A seco, o comentário não esclarecia nada. Por isso dava oportunidade a que cada um admirasse a própria argúcia imaginando ter captado a sutileza da mensagem. A mim, lembrou-me um episódio narrado por um psicólogo experimental, Milton Rokeach, em "The Three Christs of Ypsilanti". Convencido de que a perda de identidade de certos pacientes poderia ser combatida pela sistemática apresentação de evidências contrárias a crenças doentias, juntou no hospital psiquiátrico norte-americano Ypsilanti, no Estado de Michigan, três indivíduos que se consideravam o Cristo. Promovia sessões regulares com os três, obrigando-os a descobrir qual era o verdadeiro Cristo e, em conseqüência, quem seriam os outros dois. Se algum deles admitisse por um segundo a possibilidade de que um dos outros poderia ser o Cristo, a aflitiva necessidade de recuperar a própria identidade passaria a ocupar inteiramente sua atividade mental e não conseguiria mais retornar ao conforto de saber-se Cristo. Tudo isso na teoria, evidentemente, em uma das variantes do cruel exercício de massacrar a integridade moral e psicológica do semelhante, muito comum nos programas mundo cão da televisão brasileira, cujo momento de glória é a transformação final dos participantes em escombros mal vestidos de lágrimas e de desesperado despudor em troca de alguns reais. No experimento, as coisas não foram nada bem para o psicólogo. Ao contrário de se engalfinharem em memoráveis bate-bocas com o objetivo de demonstrar cada um, aos demais, quem era o único Cristo do confronto, um deles permanecia calado durante toda a sessão, outro discursava para uma platéia imaginária, mas sem se dirigir a nenhum dos outros dois, e nem ao pesquisador, enquanto o terceiro olhava e sorria, descrente, para aquele que discursava, mas também não se dirigia ao psicólogo, não buscava cumplicidade na descrença da divindade do orador.

O farol da modernidade generaliza essa história

A repetição do compulsório confronto entre as três perturbadas personalidades não alterou o roteiro. Um sempre calado, o outro sempre discursando e o terceiro sempre sorrindo. Lido há muito tempo, não recordo que descobertas o pesquisador achou que fez, nem como termina o volume. Para mim, o experimento, que já me parecia barbaramente lunático desde o início, recebeu atestado de fracasso quando um dos pacientes esclareceu porque sempre sorria, dirigindo-se ao incansável orador: "Deixa de bobagem; nós somos malucos". Ao que, para escândalo do orador, do sorridente que lavrara o diagnóstico e do pesquisador, aquele que nunca dizia nada gritou, de pé, indignado: "Não generalize! Não generalize!". Pois é, não fica bem generalizar essa história de que, no Brasil, o que se disputa é a liderança do atraso. A começar pela dificuldade em se conseguir acordo sobre o que quer dizer "atraso". Antes do encontro entre Garotinho e Fernando Henrique, iniciativas como piscina em subúrbio, restaurante a um real e benesses semelhantes, constituíam homenagens ao atraso. Agora, com a descoberta de que são todos malucos - ou seja, candidatos a presidente - e de que quantos mais candidatos competitivos se dizendo Cristo surgirem, maior a chance de que um deles venha a substituir o atual, o noticiário nunca foi tão cordato com a família Garotinho. Não demora e o velho partidão das catacumbas, repleto de militantes, certo cada um deles de que o partido é ele, adere, digamos, taticamente, ao projeto do PMDB-RJ-Garotinho. Uma espécie de Partidão-Ypsilanti a discursar para as massas. As massas, como é do conhecimento de todos que ouviram o discurso, estão sempre atrasadas, e não irão a lugar algum salvo se apascentadas por uma organização de vanguarda, a organização-Ypsilanti. Daí que seja facílimo para a turma da organização concordar com a tese de que a disputa é pela liderança do atraso. Já estão nela faz tempo. Recruta é o ex-presidente Fernando Henrique que finge haver substituído a reivindicação de farol da modernidade pela inesperada declaração: o atraso sou eu!