Título: Mudanças no perfil dos povos
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2005, Opinião, p. A15

Recentemente, quando esteve na Itália, o embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda, ex-secretário-geral da Unctad, viveu uma cena inusitada: ao entrar em uma drogaria para adquirir leite em pó próprio para bebês - uma encomenda especial para uma de suas netinhas - recebeu do atendente a resposta de que o estabelecimento havia deixado de trabalhar não apenas com aquele tipo de leite em pó, mas com qualquer outra marca do produto. "Leite em pó para bebês só vendemos agora sob encomenda", teria sido a explicação do atendente da drogaria, segundo relato do embaixador Ricupero. Ele contou o episódio que vivenciou em meio aos temas que levantou na terça-feira, em um dos ciclos de debates do Instituto Fernand Braudel. Falou sobre estratégia internacional, sobre globalização, medos e esperança que afetam as sociedades e o homem neste início de novo milênio. O exemplo do ocorrido na drogaria italiana calhou bem ao tema das mudanças por que passa o mundo, entre as quais o envelhecimento acelerado da população, que é, talvez, a de maior implicação para a definição das políticas econômicas nos próximos anos. Não apenas pelo efeito já conhecido dos custos que isso representa para as gerações mais novas, em fase produtiva de trabalho, responsáveis por gerar a renda necessária à sustentação de camadas cada vez maiores de gente idosa. O descompasso das projeções entre receitas e despesas da seguridade social é apenas um aspecto - e, diga-se, nada trivial - das alterações em curso no perfil demográfico dos países em geral. Não apenas as faixas mais idosas da população mundial estão se ampliando relativamente, porque os velhos vivem mais. Um outro indicador tem contribuído para uma mudança radical e rápida no perfil demográfico, a redução da taxa de fertilidade que envolve mulheres não apenas dos países mais industrializados, mas também de países em desenvolvimento. Só nos mais pobres, a taxa de fertilidade se mantém ainda bem acima da marca de três crianças por mulher. Aquela conjugação - aumento da expectativa de vida com redução da taxa de fertilidade - explica o fato das drogarias italianas não disporem mais de leite em pó para bebês em suas prateleiras. É a lei do mercado. Não há demanda para o produto. De fato, quando se passam os olhos pelo último relatório das Nações Unidas sobre "Prospectos para a População Mundial - revisão de 2004", com projeções até 2050, observa-se que a Itália está justamente entre os países que terá em 45 anos menos gente do que tem hoje: a população atual de 58 milhões vai encolher para 50,9 milhões em 2050. O caso é típico de uma tendência que tem se aprofundado em muitos países da Europa, a partir de meados da segunda metade do século XX. Só para continuar no mesmo exemplo, as projeções da ONU mostram que a população italiana com mais de 60 anos de idade, que hoje representa 30,7% do total, vai tomar conta do país em 2050, quando passará a responder por 56,5% do total. Não admira que a tal drogaria na Itália não tenha à venda certos produtos para bebê. Faz melhor mesmo em se dedicar a vender bens para pessoas mais velhas, pois tem de caminhar no passo dos consumidores. Números semelhantes valem para países como a Espanha, a Holanda e a Alemanha.

Envelhecimento acelerado da população e movimentos migratórios terão grandes implicações para a definição das políticas econômicas

Mas há, no processo, um outro elemento a ser considerado, que é a migração dos povos entre nações. Isso tem sido muito forte e tende a crescer em algumas áreas, tanto para os que liberam mão de obra quanto para os que recebem mão-de-obra. É o caso, por exemplo, da Ucrânia, que pelos números da ONU sairá de uma população atual de 46,5 milhões para 26,3 milhões em 2050, queda de 43,2% em termos absolutos. Obviamente, isso não decorre de nenhum processo de extermínio em massa, mas sim de emigração, um fenômeno que vai continuar a atingir os vizinhos da Rússia e parte da Europa Central. A própria Rússia, se não se cuidar vai ficar menor: pelas projeções da ONU, os antigos súditos dos abastados czares e, mais recentemente, antigos camaradas e fiéis seguidores do Politburo, vão encolher em nada mais do que 22%, quase um quarto da população, caindo de 143 milhões de habitantes para 111,7 milhões em 2050. Mas, se as pessoas não desaparecem, significa que elas se movem e se mudam de um lugar para outro. Esse movimento migratório explica o fato dos Estados Unidos aparecerem nas projeções como o país industrializado que mais continuará tendo aumento de população e onde a participação relativa dos mais idosos será menor quando comparado aos mais ricos da Europa. Pelos dados da ONU, a população dos Estados Unidos chegará a 395 milhões de pessoas em 2050, praticamente com 100 milhões a mais do que a atual. Diferentemente dos europeus, a população norte-americana com mais de 60 anos representará então 33,7% do total, praticamente igual aos 30% de hoje. A forte imigração explica essa tendência dos Estados Unidos manterem-se como um país jovem ao longo dos próximos 45 anos. Na verdade, segundo revelou Ricupero, a população norte-americana tende a continuar crescendo mesmo depois de 2050, segundo projeções feitas pela própria ONU para 2300 e cujos dados ainda não estão disponíveis ao público em geral. O Brasil está entre os países em desenvolvimento cuja população mais idosa vem crescendo substancialmente em termos relativos. Hoje, apenas 10% dos brasileiros têm mais de 60 anos de idade, mas em 2050 já serão 30,5% da população total estimada em 253 milhões de pessoas dentro de 45 anos. Desse modo, a conformação da pirâmide demográfica do Brasil tende a ficar muito parecida com a dos Estados Unidos dentro de 45 anos, com 17,7% da população na faixa de zero aos 14 anos, 57,3% na faixa entre os 15 e os 59 anos, 25% na faixa de mais de 60 anos e 5,5% na faixa de mais de 80 anos. Ao contrário, no entanto, do que ocorre nos Estados Unidos, a participação maior das faixas mais jovens e de média idade no total da população não se explica tanto pela imigração, mas pela taxa de fertilidade das brasileiras que, embora venha caindo, deve permanecer em torno da média de pouco mais de 2 filhos por mulher. A China, só para fechar, também projeta uma pirâmide demográfica mais parecida com a dos Estados Unidos, com os idosos com mais de 60 anos representando 38,2% do total da população de nada menos de 1,393 bilhão de pessoas em 2050. Vale notar que a população chinesa tende a estabilizar-se, então, em torno do nível atual, de 1,315 bilhão mas com boa parte composta por gente jovem e de idade ainda produtiva, a pressionar o mercado de trabalho.