Título: Um dia de libertação
Autor: Michael Mertes
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2005, Opinião, p. A15

Quando eu tinha 7 anos, em 1960, minha avó Angélica abriu meus olhos para o significado do 8 de maio de 1945, o dia em que a Alemanha nazista se rendeu e quando a II Guerra Mundial terminou na Europa. Estávamos passando as nossas férias de verão na Normandia, onde começou a libertação da Europa do nazismo no "Dia D", 6 de junho de 1944. Uma noite, ouvi meus pais e minha avó conversando sobre o passado. Já esqueci os detalhes da conversa deles, mas ainda ouço o suspiro da minha avó quando ela exclamou: "Graças a Deus que perdemos essa guerra"! A partir da perspectiva de uma criança, não estava evidente que perder era uma boa coisa. Mas é claro, minha avó estava certa em equiparar derrota com libertação. Quanto mais eu pensava sobre a lição que ela me ensinou há 45 anos, mais clara se tornava para mim uma outra dimensão, menos óbvia, do que disse: Fomos "nós" que perdemos a guerra. Coletivamente, os alemães não foram as vítimas inocentes de uma quadrilha de criminosos forasteiros chamados "nazistas" - o nazismo foi uma ideologia interna apoiada por milhões de alemães, e cada alemão foi responsável por suas atrocidades, quer ele ou ela tenha aderido ou não a ela individualmente. Na Alemanha de hoje, uma maioria esmagadora concorda com a proposição de que o 8 de maio de 1945 foi um dia de libertação - não só para a Europa, como também para a própria Alemanha. Na comparação com a opinião pública de 1960, isso certamente representa um enorme progresso. Paradoxalmente, porém, a proposição também pode conter um elemento de esquecimento, pois tende a dissimular o fato de que a liberação exigiu uma derrota militar. Para usar o linguajar da minha avó, não fomos "nós" os libertadores, mas "eles". A maneira como as pessoas enxergam o passado nos revela mais sobre suas atitudes presentes do que sobre o próprio passado. Isto é o que o termo "política da memória" deve indicar. E isso explica porque não importa se os eventos relevantes aconteceram há 60 anos (como a II Guerra Mundial), há 90 anos (como no caso do genocídio dos armênios) ou mesmo há 600 anos (como a batalha de Kosovo, em 1389). Um conflito violento no passado pode sobreviver na condição de uma guerra de memórias no presente, como pode ser observado na disputa atual entre China e Coréia do Sul de um lado, e o Japão, de outro. Uma guerra de memórias, por sua vez, pode algumas vezes levar a um conflito violento no futuro. Ex-perpetradores freqüentemente tentam deslegitimar a superioridade moral das suas vítimas ao alegarem que eles próprios foram vítimas. Portanto, o 60º aniversário do bombardeio de Dresden pelas forças aliadas, em 13 de fevereiro de 1945, provavelmente representou um momento mais crucial da "política da memória" alemã do que deverá ser o 60º aniversário do 8 de maio de 1945.

Alemães não foram vítimas dos nazistas: apoiaram maciçamente sua ideologia e, por isso, foram responsáveis por suas atrocidades

Grupos de extrema direita abominavelmente apelidaram o ataque pelo qual ao menos 30 mil pessoas foram mortas de "holocausto de bombas de Dresden". Felizmente, sua campanha de propaganda foi um fracasso. Embora seja verdade que milhares dos civis mortos em Dresden e outras cidades alemãs eram inocentes em um nível individual, não há dúvida de que era moralmente imperativo que a Alemanha fosse derrotada coletivamente. No lado esquerdo do espectro político alemão, a proposição de que o 8 de maio de 1945 foi um dia de libertação permanece inconteste. Algumas vezes, entretanto, reprime-se a menção de que o uso maciço da força foi necessário para atingir esse resultado. O pacifismo da esquerda tende a relegar esse fato simples. Seu lema "guerra nunca mais" é só uma meia verdade - a outra metade é "contemporização nunca mais". O 8 de maio de 1945 não foi "hora zero", como reza o ditado popular na Alemanha. Ele teve um antecedente, ou seja, uma ausência de resistência preventiva no país e no exterior à ameaça que se desenvolveu na Alemanha nazista durante os anos 30. Há uma outra lição a ser aprendida. O 8 de maio foi um dia de libertação para o qual o exército soviético contribuiu decisivamente. Mas, para milhões de pessoas na Europa Central e Oriental, a libertação foi seguida pela opressão de Stalin. A atual guerra de memórias entre as repúblicas bálticas e a Rússia, com respeito à comemoração internacional a ser realizada em Moscou em 9 de maio deste ano, faz a Alemanha se lembrar de uma responsabilidade histórica. O pacto de não-agressão teuto-soviético, o chamado pacto Hitler-Stalin, firmado em agosto de 1939, foi suplementado por um anexo secreto, dividindo os Estados limítrofes da Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e Romênia em esferas de influência para ambos os lados. Mas perdoar as atrocidades nazistas, apontando para crimes stalinistas, é um estratagema intelectual e moralmente inaceitável. Quando o premiê Schröder viajar a Moscou para as comemorações na Praça Vermelha, deverá ter viva na memória a contribuição da Alemanha nazista para a tragédia báltica. Em 8 de maio deste ano, os oradores públicos nos lembrarão como é importante não esquecer. Eles enfatizarão que, se as lições da história não forem aprendidas, a história tenderá a se repetir. Tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Pessoalmente, porém, também me lembrarei da sentença da minha avó, "Graças a Deus - e graças a todos aqueles bravos soldados aliados que sacrificaram as suas vidas em prol da liberdade da Europa".