Título: A fraude com títulos públicos não se cansa
Autor: Raquel do Amaral de Oliveira Santos
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2005, Legislação & Tributos, p. E2

Já se tornou comum para muitas empresas o assédio de profissionais que tentam, de toda a forma, realizar operações envolvendo títulos públicos emitidos no século passado. Em geral, o que se propõe é a cessão desses títulos às empresas para os mesmos sejam utilizados para quitação de tributos, mediante compensação. Trata-se de um ardil antigo, mas que nos últimos tempos tem retomado força e lesado contribuintes desavisados, que adquirem de boa-fé tais títulos imaginando, assim, poder cumprir suas obrigações para com o fisco, o que acaba não ocorrendo, já que esse tipo de compensação não é aceito pelas autoridades fazendárias sob nenhuma hipótese. Como se percebe, os contribuintes que adquirirem títulos para pagamento de tributos, além de incorrer em prejuízo financeiro decorrente de uma operação que será considerada inválida, ainda se arriscam a questionamentos por parte das autoridades fiscais. Porém, antes de adentrar na questão do posicionamento fiscal, é necessário identificar os títulos a que nos referimos. Basicamente, podemos citar três espécies de apólices comumente oferecidas. Primeiramente, existem as apólices da dívida interna, emitidas entre 1902 e 1969. Todavia, tais títulos não são mais válidos, há no mínimo, 30 anos, pois todos aqueles emitidos entre 1902 e 1955 foram trocados por novos, cujo prazo de prescrição de cinco anos há muito se expirou. Também são oferecidas letras do Tesouro Nacional, emitidas na década de 70, conhecidas por LTN 1970. Tais títulos tinham um prazo de 365 dias, portanto, não são mais válidos. E há ainda as apólices em francos-franceses emitidas nas décadas de 40 e 50 em função do acordo Brasil-França sobre títulos brasileiros emitidos nesse último país. Esses títulos poderiam ter sido resgatados até 1951, perdendo seu valor posteriormente. Deve-se ressaltar que, além das espécies mencionadas, também são oferecidos no mercado títulos falsos, em especial, LTN 1970 supostamente emitidas com prazo superior ao mencionado, as quais não têm qualquer legitimidade. Por essa razão, o contribuinte deve estar atento a tais formas de embuste, evitando assim prejuízos a seu patrimônio. Além das apólices mencionadas, também são comuns no mercado as negociações envolvendo títulos que decorrem dos empréstimos compulsórios em favor da Eletrobrás. A origem dos mesmos é do ano de 1962, quando, visando financiar a expansão do setor elétrico no país, foram instituídos empréstimos com um prazo de restituição de 20 anos, remunerados por juros equivalentes a 6% ao ano sobre o valor nominal atualizado. Desde a instituição dos empréstimos já foram realizadas duas conversões de créditos em ações relativas, primeiramente em 1988, relativamente aos créditos de 1978 a 1985 (contas de 1977 a 1984), e posteriormente para os créditos de 1986 e 1987 (contas de 1985 e 1986). Contudo ainda há no mercado um lote de títulos que ainda não foi convertido em ações e que tem sido negociado, dentre outras coisas, com a finalidade de compensar tributos. Nesse caso, mesmo se tratando de títulos que não perderam a validade (diferentemente dos anteriores), a compensação dos mesmos com tributos não será aceita administrativamente. Aliás, a Secretaria da Receita Federal já se manifestou diversas vezes no sentido de não aceitar esse tipo de compensação, entendendo, inclusive, que a mesma constitui fraude.

Há três tipos de apólices comumente oferecidos, todos eles já sem validade, independentemente do posicionamento fiscal

Outra operação que tem sido ofertada consiste na utilização de precatórios para a compensação de tributos federais. Nesse caso, o que se verifica é a existência de títulos, legítimos, decorrentes de ações judiciais em que o Estado foi considerado credor. Várias empresas oferecem os precatórios como um instrumento para liquidação, na esfera administrativa, de débitos tributários, oferta essa que deve ser tida com muito cuidado. De fato, existe uma previsão, no artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), no sentido de que as parcelas dos precatórios pendentes na data de 13 de setembro de 2000 e daqueles decorrentes de ações ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, quando não liquidadas até o fim do exercício a que se referem, podem ser utilizadas na compensação de tributos, sendo ainda permitida a cessão dos créditos. No entanto, o artigo 78 ainda não foi regulamentado, isto é, não possui previsão em lei específica que disponha como esse procedimento será realizado, razão pela qual qualquer compensação nesse sentido realizada pelo contribuinte poderá ser objeto de questionamentos por parte das autoridades fiscais. Aliás, cumpre observar que a falta de regulamentação para a compensação de precatórios com débitos tributários, mais do que uma omissão por parte das autoridades, é um desrespeito ao principio da eqüidade e aos contribuintes que, na prática, ficam impedidos de receber ou transferir créditos a que teriam direito. Outro argumento utilizado pelo fisco para autuar os contribuintes baseia-se em uma manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 2.099, afirmando que "a previsão normativa de cessão de precatório e utilização subseqüente na liquidação de débito fiscal conflitam, de início, com o preceito maior do artigo 100 da Constituição Federal." Percebe-se, então, que o contribuinte, ao utilizar precatórios ou títulos públicos para a compensação administrativa de tributos, arrisca-se a autuações fiscais para ambos os casos, não havendo também posicionamento favorável dos tribunais superiores a esse respeito. Outra manifestação do fisco que demonstra claramente seu posicionamento no sentido de autuar os contribuintes que tentarem a compensação de seus tributos com títulos é verificada no Ato Declaratório Interpretativo nº 17, de 2002, que prevê a aplicação de multa em tais casos, multa essa que poderá ser de 150% sobre o valor dos tributos compensados indevidamente. Ainda que se possa questionar a validade desse Ato Declaratório nº 17/02, por ser um ato infra-legal, recentemente a Lei nº 11.051, de 2004, trouxe novamente à tona a possibilidade de atuação no caso de compensações indevidas, conferindo status legal a essa norma que já existia no âmbito administrativo. Ressalte-se que, em determinados casos, existem bons argumentos jurídicos defendendo a legitimidade das compensações, mas o contribuinte que desejar utilizá-las como meio de extinção de seus débitos fiscais deverá estar amparado em decisão obtida através de medida judicial. Caso contrário são grandes as chances de uma autuação.