Título: Governo argentino acentua instabilidade do Mercosul
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2005, Opinião, p. A8

Nada é mais previsível nas atuais relações entre Brasil e Argentina que as ondas de insatisfação do presidente Néstor Kirchner em relação à política externa brasileira. Em coro, as atuais autoridades argentinas estão elevando o tom nas questões econômicas e diplomáticas e colocando mais uma vez em xeque a precária estabilidade do Mercosul. A política do governo Lula nestes casos, correta no geral, tem sido a mesma que já empregou em situações semelhantes - a contemporização. As peculiaridades da situação argentina e a personalidade de Kirchner tornam inevitáveis os confrontos. A crônica instabilidade, que desaguou na mais grave crise de sua história, dizimaram o peso político e econômico da Argentina no continente. É natural que um governo como o de Kirchner não se conforme com esta situação e proteste contra uma suposta hegemonia do Brasil, contra as tentativas de seu vizinho de obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU ou suas tentativas de intermediar os conflitos na América do Sul. Certo ou errado, é direito do Brasil pleitear o que acha que deva ser o seu papel na região e na esfera global. É lamentável, porém, que parceiros em um bloco comercial como o Mercosul não se entendam - ou concordem em discordar, de forma apropriada - a respeito de suas respectivas intenções. Embora mecanismos azeitados de consultas e diálogo não sejam garantia de que as divergências sejam todas dirimidas, eles poderiam assegurar um ambiente pacífico e institucional de condução das desavenças. A cada contenda, ratifica-se a necessidade de um canal de entendimento eficaz, que nunca se materializa. O resultado é mais incompreensão, ressentimentos mútuos e a desmoralização do Mercosul perante a comunidade internacional. A questão se torna mais grave quando as reclamações saem do plano político e penetram no campo econômico. O fantasma da "invasão" brasileira continua assombrando mentes na Casa Rosada. Políticas sucessivas de destruição do parque industrial argentino vêm sendo adotadas há décadas, desde as executadas por Martinez de Hoz na ditadura militar até a desastrosa aventura do câmbio fixo. Mas a compra de duas ou três grandes empresas argentinas por grupos brasileiros é explorada como uma ofensa ao orgulho nacional. E tudo fica pior ainda quando o secretário de Indústria da Argentina, Miguel Peirano, ameaça impor medidas unilaterais - com negociações marcadas - caso o Brasil não restrinja suas exportações para o país. O protecionismo argentino fere as bases do Mercosul e a tática da intimidação, longe de comover alguém, acirra à toa os ânimos. A Argentina teve uma recuperação econômica surpreendente e vem crescendo a taxas que são o dobro ou triplo da brasileira. Entre 1995 e 2003 teve superávits comerciais seguidos. Com o país crescendo à velocidade acima dos 7%, apareceu o déficit com o vizinho, o que era mais que esperado. Carente de crédito e às voltas com uma crônica falta de competitividade, as empresas argentinas estão pouco preparadas para enfrentar a concorrência. A saída encontrada pelo governo Kirchner tem sido o protecionismo contra o Brasil, enquanto o mercado brasileiro compra em quantidades crescentes as mercadorias da Argentina e hoje quase se iguala à União Européia como importador de bens do vizinho. A proposta de salvaguardas automáticas apresentadas pelo governo argentino é um passo atrás para o Mercosul e o Brasil está certo ao rejeitá-las. É preciso encontrar outros mecanismos para minorar as "assimetrias", mas a diplomacia argentina tem sido pródiga em negociar por ultimatos. O pano de fundo das disputas envolve o estilo de governar de Kirchner e o quadro político em que se move. Ele chegou ao poder com o voto de pouco mais de um em cada cinco eleitores e sua histrionice tem o objetivo de obter o máximo apoio que puder - nas palavras do consultor Miguel Broda, Kirchner se "autoplebiscita" sem parar. Ele tem pela frente o duro teste das eleições legislativas, não porque tema os outros partidos, mas porque está envolto em uma disputa cruenta pelo controle do partido peronista contra Eduardo Duhalde, que tem se alinhado com o Brasil em várias questões de política externa. Ganhar esta batalha é importante para sua própria reeleição. O apelo ao nacionalismo, ao inimigo externo (a hegemonia brasileira), à auto-suficiência ríspida de líder carismático, em um país que ainda cultua Perón, traz dividendos certos - até quando, não se sabe. O certo é que o governo argentino jogará duro com o Brasil nos próximos meses.