Título: Conflito no Iraque não dá origem a "heróis"
Autor: Carlos Eduardo Lins da Silva
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 11 a 15

Depois de dez meses em Bagdá, Paul Rieckhoff, 30 anos, voltou para Nova York. Para sua surpresa, após as atrocidades que vira no Oriente Médio, a vida de seus compatriotas seguia o rumo de sempre. Na escola em que trabalhou ou em Wall Street, onde foi analista de um banco, era como se a guerra não fosse um problema de seu país. "Estava encarando de frente a total alienação dos americanos. Para eles, os soldados que estavam lutando e morrendo no Afeganistão e no Iraque eram apenas seres abstratos, filhos de outras pessoas", conta o primeiro-tenente da Guarda Nacional, responsável por mais de mil ações de patrulhamento, principalmente na região de Adamiyah. Todos os fins de semana, Rieckhoff, que é bacharel em ciências políticas, se apresenta no quartel para exercícios e treinamento. Mas, desde que voltou para os EUA, sua face mais visível é a de organizador e diretor-executivo da Operation Truth ("Operação Verdade"), uma das principais organizações criadas para se opor à invasão do Iraque e criticar a maneira como a mídia apresentou a ação dos militares americanos. Tanto a OT quanto a Iraq Veterans Against The War buscam ajudar os que voltaram com ferimentos ou deficiência física. Também auxiliam novas gerações de americanos a lidar com perdas e a necessidade de sobreviver sem a ajuda de arrimos de família. Histórias de guerra têm conexões, mas, para muitos veteranos, a comoção nacional pelos combatentes do Vietnã em nada se compara com a reação aos que lutaram nos conflitos recentes do Oriente Médio. Os soldados de hoje não são os heróis de outros tempos. "No Vietnã, a maioria dos que serviram tinham entre 19 e 20 anos. No Iraque e no Afeganistão, 50% dos que lá estiveram não eram ´militares profissionais´ e, por isso, pelo menos 40% têm mais de 30 anos", conta Rieckhoff. Veteranos do Vietnã, como Tim Origer, do Veterans For Peace, já declararam que os que voltaram do Iraque enfrentaram uma forma de estresse psicológico muito mais intensa do que os que atacaram os vietcongues. No Iraque, as tropas tiveram de lidar, ao mesmo tempo, com uma guerrilha cada vez mais poderosa, a incapacidade muitas vezes de distinguir o fogo amigo do inimigo e o desespero único de tirar inúmeras vidas de civis. Bem diferente do Vietnã, a maioria dos que serviram no Iraque permanecem militares, limitando drasticamente sua capacidade militante. Um outro contraponto à Guerra do Vietnã é a história de Robert Acosta, 21 anos. Ele perdeu a mão direita em combate e decidiu se filiar à OT depois de ser transferido de hospital para hospital e aguardar auxílio. Acosta lembra que pessoas na Califórnia, onde estuda, se surpreendem quando ele explica as razões de sua deficiência. "Ao dizer que perdi a mão na guerra, vários colegas me perguntam: 'Mas que guerra?'". Por isso, uma das bandeiras da OT é a de não deixar a invasão do Iraque cair no esquecimento. "Nosso trabalho é de memória. Não queremos deixar que os americanos esqueçam, nunca, o que de fato aconteceu no Iraque", diz Paul Rieckhoff. De acordo com a OT, um em cada sete soldados que serviram no Afeganistão e no Iraque voltaram com problemas relacionados ao uso de álcool. A segunda maior incidência é a de graves danos psicológicos. "Sabemos que há um índice elevado de suicídios, mas o governo não revela os números de maneira honesta. De certa maneira, estamos em uma situação pior do que a dos presos aqui nos Estados Unidos. Eles, pelo menos, têm programas específicos de recuperação e auxílio médico. Nós, nem isso", diz Rieckhoff. Outro participante da OT é o ex-fuzileiro naval Sean Huze. Sua experiência é emblemática. Alistou-se no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA pouco antes do 11 setembro. Um ano e quatro meses depois foi mandado para o Iraque confiante em que iria enfrentar os "bandidos que haviam atacado seu país". Huze voltou outro do Oriente Médio. Traumatizado com a agressão a civis e crianças iraquianas que testemunhou, e com um grave ferimento no crânio, entrou na OT a fim de se opor à guerra e criticar severamente a maneira como a ocupação do Iraque foi feita. "Somos vozes solitárias, um sussurro. Juntos podemos mudar, pelo menos, a maneira como este país vê a guerra", relata. Se a OT centra suas ações em um acompanhamento quase diário da vida dos veteranos - há inclusive um blog atualizado várias vezes ao dia - a IVAW luta pela retirada das tropas no Iraque, com boa parte de seus membros ainda estacionados no Oriente Médio. Uma de suas principais vozes é a do sargento Rob Sarra, que, depois de nove anos no Corpo de Fuzileiros Navais, enfrentou tratamento contra estresse psicológico. Em março de 2003, quando estava na cidade de Al-Shatra, no Iraque, depois de receber uma série de avisos sobre homens-bomba que atacavam os acampamentos militares dos Estados Unidos, atirou em uma mulher que andava em direção a uma das barracas dos soldados carregando algo pesado em suas roupas. Pediu a ela que parasse, mas a mulher não entendeu. Foi baleada e morreu por ele e outros fuzlieiros. Quando foram verificar o que ela carregava, descobriu-se que era apenas chá e pão.