Título: O Vietnã só deixou perguntas
Autor: Carlos Eduardo Lins da Silva
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 11 a 15

Entre os temas debatidos na eleição americana de 2004, um dos que mais motivou apaixonados debates foi uma guerra que acabou há 30 anos, comemorados em 30 de abril. Já se passou uma geração, mas os EUA ainda não esqueceram as divisões que aquele conflito provocou no país, como ficou claro na campanha eleitoral do ano passado. John Kerry, o candidato de oposição à Presidência, lutou no Vietnã, foi condecorado, mas se tornou um dos líderes do movimento pela retirada das tropas de seu país do Sudeste Asiático. George W. Bush, que se reelegeu, cumpriu o serviço militar em território americano e não foi enviado aos campos de batalha vietnamitas. Os elementos referentes ao Vietnã na biografia dos dois adversários foram motivo de seguidas escaramuças entre os grandes campos em que os EUA sempre se cindiram quando o assunto é Vietnã: os favoráveis e os contrários à guerra. Embora o início do envolvimento militar americano no Vietnã tenha ocorrido durante governos democratas (Kennedy e Johnson) e a retirada, com republicanos (Nixon e Ford), ao longo das três décadas seguintes as posições se inverteram. Foi o presidente Ronald Reagan, principal inspirador ideológico do Partido Republicano na segunda metade do século XX, quem estabeleceu o argumento de que foi negada aos militares americanos a permissão para vencer a Guerra do Vietnã. No Partido Democrata, todos os líderes importantes dos últimos tempos (Bill Clinton, Al Gore e Kerry) desde jovens condenaram a participação americana na guerra. A intensidade da polêmica de apenas seis meses atrás comprovou que a sociedade americana ainda não conseguiu resolver a questão, que vai além da política e da ideologia e diz respeito a valores morais e à própria concepção do que são os EUA como nação e qual o papel que devem desempenhar no mundo. Mais de 58 mil militares americanos morreram no Vietnã ou desapareceram em ação. O número preciso varia de 58.132 a 58.226, conforme as fontes. Mais da metade deles tinha menos de 21 anos de idade. Pelo menos 211.471 ficaram fisicamente feridos, dentre os quais dezenas de milhares sofreram mutilações permanentes. É impossível determinar quantos dos 8.744.000 soldados que serviram no Vietnã tiveram problemas psiquiátricos sérios. Poucas famílias do país não foram diretamente afetadas pelo impacto sobre um parente, vizinho ou amigo que esteve no Vietnã. A esses números impressionantes é preciso acrescentar a quantidade também não verificável de civis e militares vietnamitas mortos e feridos. No caso dos não combatentes, as estimativas variam de 1 a 4,5 milhões de vítimas; entre soldados e guerrilheiros, os cálculos são de que morreram entre 1,5 e 2 milhões. E ainda há centenas de soldados australianos e neozelandeses, estudantes mortos por policiais em campi universitários americanos, jornalistas de várias nacionalidades. O drama dos últimos dias do regime do Vietnã do Sul em Saigon (hoje Ho Chi Minh) foi intenso. As cenas de milhares de vietnamitas que tentavam fugir a bordo dos helicópteros dos EUA que fizeram o resgate de seus cidadãos e aliados que haviam se protegido na embaixada americana marcam até hoje os que as assistiram e, muito mais, os que as viveram. Um dos mais impressionantes relatos desses momentos finais da mais longa guerra do século XX está no livro "Heroes" (Vintage Books, 1986), do jornalista australiano John Pilger, que os testemunhou pessoalmente. Ele descreve o impressionante embaixador Graham Martin, que insistiu, até quando já era praticamente impossível escapar com vida, na tentativa de obter uma retirada negociada e honrosa para ele e seu pessoal. Martin, por exemplo, se recusava a derrubar uma tamarineira dos jardins da embaixada, que tinha de ser abatida para poder permitir o pouso de helicópteros de maior porte. A árvore só foi ao chão no dia 29 de abril, por iniciativa do chefe da equipe da CIA e à revelia do embaixador, para quem ela representava o prestígio dos EUA. Pilger cita um ditado vietnamita ("Só quando a casa queima é que você identifica os ratos") ao relatar a atitude de altos dignitários do agonizante regime de Saigon que chegavam à embaixada para escapulir, acompanhados de suas mulheres envoltas em casacos de pele e carregados de malas e pacotes, que, afinal, tiveram de ficar para trás porque os helicópteros superlotados não conseguiriam transportar tamanho volume de bagagem. É possível que ainda demore muito até que a sociedade americana seja capaz de dar conta, coletivamente, do trauma da primeira guerra que seu país perdeu.