Título: Indústria importa da China para defender mercado
Autor: Ricardo Balthazar e Raquel Landim
Fonte: Valor Econômico, 09/05/2005, Brasil, p. A3

A Gradiente importou no ano passado R$ 175 milhões em aparelhos eletrônicos chineses que vendeu no mercado interno com sua marca. Eles representaram quase um quinto das vendas da empresa. A Gulliver conseguiu metade do faturamento com brinquedos que ela mesma trouxe da China. Jaquetas vendidas pela Hering no país foram feitas por indústrias chinesas também. Chegaram com etiqueta e tudo. Esses exemplos estão longe de representar um fenômeno generalizado. Mas eles mostram que empresas nacionais influentes em setores muito vulneráveis à competição com a China adotaram uma estratégia surpreendente para enfrentar a agressividade chinesa, passando a vender com sua marca produtos importados diretamente da China, e não mais fabricados no Brasil. Elas têm muitas razões para fazer isso. O objetivo da Gradiente era melhorar sua margem operacional, como ela explicou no relatório que acompanhou seu balanço financeiro mais recente. Cobrando mais caro pelos aparelhos chineses no mercado doméstico, a empresa conseguiu vender aparelhos produzidos no país com preços abaixo do custo. As importações da Gulliver são o resultado de acordos com empresas americanas que controlam os direitos de venda de brinquedos associados a filmes e personagens famosos. Só a Gulliver pode vender esses brinquedos no país, mas eles são feitos em indústrias chinesas para o mundo todo e ela não tem como produzi-los aqui a preços equivalentes. Produtos como esses, que dependem de acordos de licenciamento, são responsáveis por mais de dois terços das vendas de brinquedos no país. "Se não importarmos esses produtos, outros vão importá-los e vendê-los aqui", diz o gerente nacional de vendas da Gulliver, Paulo Benzatti. "Vender esses brinquedos com nossa marca fortalece nossa imagem e melhora o faturamento." As jaquetas da Hering representam uma fatia minúscula das suas vendas. Mas exibi-las na vitrine ajuda a atrair a freguesia e seria inviável fabricá-las no Brasil, porque o material sintético de que são feitas é mais barato na China. "Algumas confecções são como o circo, caminham o mundo em busca de mão-de-obra barata", diz o diretor-superintendente da Hering, Ulrich Kuhn. O Brasil comprou no ano passado US$ 3,7 bilhões em mercadorias da China. As importações de produtos chineses foram 73% maiores que no ano anterior. Metade das roupas e mais de dois terços dos sapatos, brinquedos e aparelhos de DVD importados pelo país foram feitos na China. Para o economista José Roberto Mendonça de Barros, da consultoria MB Associados, movimentos como os da Gradiente e da Gulliver são sintomas de transformações mais profundas em curso na indústria brasileira. "A competição com a China obrigará as empresas de vários setores a rever suas estratégias", afirma. "Em muitos casos as perdas serão inevitáveis e isso vai doer." Para ele, é uma nova fase do processo de reestruturação do tecido industrial do país. A abertura comercial dos anos 90 fez as empresas cortarem custos e buscarem eficiência. Depois, a desvalorização do câmbio empurrou-as para o mercado externo, provocando o salto observado nas exportações nos últimos anos. Agora, grandes exportadores como a Embraer, a siderúrgica Gerdau e o grupo Votorantim começaram a investir em fábricas e canais de distribuição no exterior. O passo seguinte, diz Mendonça de Barros, será imitar as multinacionais de países desenvolvidos que transferiram linhas de produção para a China para aproveitar as vantagens locais. Empresas ameaçadas pelos chineses observam esse cenário com apreensão. Muitas concluíram que é mesmo impossível vencer a concorrência da China em alguns segmentos e vêem na importação um meio de preservar o controle que suas marcas ainda têm sobre canais de distribuição do mercado doméstico. Essa estratégia também tem riscos. Em março, executivos das indústrias de calçados e de brinquedos reuniram-se para avaliar o efeito do aumento das importações chinesas em seus setores. Eles concluíram que seria suicídio abandonar a fabricação local e usar apenas as importações para enfrentar a China, segundo um participante dessa conversa. Alguns fabricantes de brinquedos fizeram isso nos anos 90. Mas com o tempo o valor de suas marcas foi corroído pela falta de diferenciação entre seus produtos e as mercadorias importadas, e eles foram passados para trás por importadores mais ágeis e com maior fôlego financeiro. Existem outros caminhos. Há dois anos a Vulcabrás deixou de fazer os sapatos populares que fizeram sua fama no passado e passou a fabricar tênis da americana Reebok. Ela tem exclusividade sobre a marca no Brasil e na Argentina e produz no país a maioria dos seus modelos. Os mais caros vêm da China. "Nossa vantagem é a logística", diz o superintendente da Vulcabrás, Milton Cardoso. "Um tênis importado leva seis meses para chegar." Outras empresas têm usado a China para diversificar a cadeia de fornecedores. A fabricante de brinquedos Bandeirante começou a trazer da China alguns componentes usados em seus produtos. Correntes de bicicleta, motores e baterias de carros elétricos da Bandeirante são chineses. "O custo é menor, a qualidade é melhor e alguns itens não são mais feitos aqui", afirma o diretor de marketing, Ricardo Puti. Para a maioria das empresas, ainda é possível sobreviver explorando segmentos em que marcas populares valem mais que a capacidade dos chineses de produzir em massa a custo baixo. Os fabricantes de calçados mais bem-sucedidos investiram muito nos últimos anos no desenvolvimento de suas marcas e na redução dos seus custos de produção. As maiores do setor, como a Azaléia, transferiram para o Nordeste a maioria de suas linhas de produção na década passada, num processo similar ao que levou as multinacionais do ramo a ir para a China. Mas muitos acham que dificilmente isso vai durar para sempre. "Em algum momento nosso modelo terá que ser repensado", diz o presidente da Azaléia, Antonio Britto Filho.