Título: Um retrato realista sobre as mazelas do Judiciário
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2005, Opinião, p. A10

No ano passado, quando a Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou um estudo sobre o Judiciário, encomendado pelo Ministério da Justiça, constatando que a Justiça brasileira é a mais cara do mundo, as entidades de classe dos magistrados gritaram alto. Os dados estavam distorcidos, diziam. Dessa vez, foi o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, quem botou o dedo na ferida. Segundo levantamento feito pelo próprio STF, antecipado por Jobim no final de semana, a Justiça brasileira é cara, lenta e ineficiente e não tem razão para isso. O país tem uma média de 7,62 juízes para cada 100 mil habitantes, número acima da média de sete que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera ideal. As entidades, dessa vez, não botaram os números sob suspeita, mas defenderam a reforma processual. Os "Indicadores Estatísticos do Judiciário", elaborados sobre os dados processuais de 2003, são uma medida importante da eficiência desse poder. Em média, 40,74% dos processos são julgados no mesmo ano. Os demais são postergados para o ano seguinte. Se esses números forem cotejados com os dados do "Diagnóstico do Poder Judiciário" da FGV, chega-se à conclusão de que a ineficiência e a morosidade não decorrem de falta de estrutura ou de pessoal, ou de ausência de estímulo financeiro aos profissionais da Justiça. O Judiciário brasileiro consumiu, em 2002, 3,66% do orçamento nacional, abaixo apenas do italiano; os salários dos juízes federais eram, na época, os maiores do mundo e correspondiam a três vezes o valor da média mundial. De acordo com os indicadores do STF, a ineficiência também não se deve à precariedade de quadro funcional: em 2003, todo o Judiciário dispunha de 246.632 servidores, ou 139,4 por 100 mil habitantes, quando a média internacional situava-se em menos da metade - 50 funcionários. O sistema é ineficiente e abriga enormes disparidades regionais. Segundo a FGV, a tramitação de uma ação, na média nacional, custa R$ 1.848,00 aos cofres públicos. No Amapá, pode chegar a R$ 6.839,00 - e, no outro extremo, R$ 973,00 na Paraíba. Segundo os indicadores do STF, o Ceará tem a menor despesa do país com a Justiça - cerca de R$ 25 por habitante - e a maior "taxa de congestionamento", um indicador de eficiência que vai de zero (melhor desempenho) a um (pior). O estado tem 0,99 de eficiência e apenas 62 funcionários do Judiciário por 100 mil habitantes. O Distrito Federal exibe 274 funcionários da Justiça por 100 mil habitantes, mais do que o dobro da média nacional de 112. Pará, Amazonas e Alagoas possuem menos de 50 funcionários por 100 mil habitantes. Piauí tem juízes e funcionários em número suficiente - e mais de 40 mil processos parados, alguns deles com mais de dez anos de tramitação. O quadro traçado pelo STF da Justiça permite um diagnóstico em profundidade do poder, no momento em que dá os seus primeiros passos o recém-criado Conselho Nacional de Justiça, que terá a função de controle externo da magistratura. Mostra que a desigualdade regional brasileira não é apenas econômica e social. Ela se reflete também no acesso dos cidadãos à Justiça. Estende para um poder até agora intocável a discussão sobre a eficiência administrativa, ao mostrar sistemas judiciais estaduais que são caros e não andam, como é o caso do piauiense, e Justiças estaduais que se modernizaram a ponto de terem o controle sobre a produtividade dos juízes, como é o caso de Santa Catarina. Reabre, também, a discussão sobre o interminável sistema processual brasileiro, como reivindicam as associações dos magistrados. É impossível manter um sistema judiciário que permite até 120 recursos sobre uma mesma sentença. Isso é um prêmio ao réu. Os mecanismos processuais protelatórios são altamente concentradores de direitos. O Conselho Nacional de Justiça iniciará o seu trabalho com um retrato de corpo inteiro do sistema judiciário brasileiro. Mais do que nunca, os números do STF colocaram em questão a efetividade da Justiça. Existe uma forte relação entre a efetividade do direito e a corrupção - e quanto menos efetivo o sistema judiciário, maior o custo de investimento no país. Colocar a Justiça funcionando, e sob a vigilância de um controle externo efetivo, é uma questão de justiça - econômica, social, política e mesmo ética.