Título: O Brasil por decreto e sem concorrência
Autor: Ricardo Inglez de Souza
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2005, Legislação & Tributos, p. E2

Na semana passada o senador Gerson Camata enviou ao Senado Federal o Projeto de Decreto Legislativo nº 211/05, que tem por objetivo "sustar" a decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no caso Nestlé/Garoto. Argumenta-se que, desta forma, se estará protegendo princípios constitucionais. Ledo engano. Estamos diante de profundo desrespeito ao princípio da repartição de poderes e de flagrante abuso de prerrogativas legislativas. Como se não bastasse, caso a iniciativa seja ratificada pelos demais membros do Congresso Nacional, a concorrência no Brasil estará sentenciada ao descrédito total. Sem entrar no mérito da debatida decisão do Cade, caso qualquer interessado sinta-se prejudicado e a considere desconforme com os preceitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, poderá recorrer ao poder competente para administrar a Justiça no Brasil - o Poder Judiciário. O Poder Legislativo é classicamente conhecido por sua função de traduzir os valores de uma sociedade em normas gerais. Deve legislar e fiscalizar, não julgar. O julgamento é função atípica do Poder Legislativo e, por isso, deve ser utilizada apenas nas circunstâncias expressamente previstas em lei, sem permitir interpretação extensiva. O artigo 49, inciso V da Constituição Federal brasileira prevê que o decreto legislativo poderá ser utilizado pelo Congresso Nacional para "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". A decisão do Cade tem natureza de ato administrativo concreto e individual. O próprio Cade ou o Judiciário poderão rever a decisão e declará-la inválida em virtude, por exemplo, de ilegalidade. Definitivamente, não há previsão constitucional para a revisão pelo Poder Legislativo.

O decreto legislativo desacredita o sistema brasileiro de defesa da concorrência e representa um retrocesso histórico

Diferentemente das decisões do Cade, os atos normativos têm caráter abstrato e aplicação geral. Portanto, natureza completamente distinta. Vale mencionar ainda que o inciso V do artigo 49 da Constituição Federal é criticado por representar uma afronta ao princípio da separação de poderes. A revisão da legalidade dos atos da administração e a função de dizer o direito é do Poder Judiciário, não do Poder Legislativo. A intervenção de um poder em outro, em um Estado democrático de direito, é algo que deve ser tratado como excepcional e, portanto, interpretado de forma restritiva. Na introdução do Projeto de Decreto Legislativo nº 211/2005 afirma-se que o inciso V do artigo 49 da Constituição Federal estabelece competência para o Congresso Nacional sustar os atos do Poder Executivo, incluindo neste rol "decisões normativas" proferidas pelo Cade. Além disso, alega-se a "existência de inúmeras irregularidades" na decisão do Cade. Todas as irregularidades apontadas estão relacionadas a aspectos formais e materiais da decisão. Todas as irregularidades, no entanto, devem ser questionadas perante o Poder Judiciário. Finalmente, o projeto alega que a decisão do Cade viola o princípio constitucional da livre iniciativa. Mais uma vez sem entrar no mérito da decisão do caso Nestlé/Garoto e falando em termos gerais e abstratos, a Lei nº 8.884/94, fundada nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, estabelece que devem ser apresentadas para aprovação do Cade todo e qualquer ato que possa resultar prejudicial à ordem econômica. A lei dá competência para o Cade julgar e aprovar, ou não, concentração econômica, como ocorre na maioria dos países. Portanto, o simples fato de reprovar uma concentração não pode ser interpretado como ofensa à livre iniciativa. A análise concorrencial é um balaço entre valores positivos e negativos resultantes de uma concentração, e quando se conclui que os prejuízos para concorrentes, fornecedores, clientes e consumidores é maior do que os possíveis benefícios gerados pela concentração, a autoridade não tem outra opção a não ser reprová-la. Seria legítimo que qualquer interessado recorresse da presente decisão perante o próprio Cade - como o fez a Nestlé - ou diretamente no Poder Judiciário. Porém, o projeto de decreto legislativo pretendido, além de afronta ao Estado de direito, desacredita o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. E isso representará um retrocesso histórico e uma perda para a economia nacional diante da falta de seriedade de nossas instituições.