Título: Para BC russo, juro é elemento secundário para conter inflação
Autor: Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico, 18/10/2004, Brasil, p. A-4

Brasil e a Rússia estão discutindo projetos de cooperação comercial e investimento bilateral, mas as medidas macroeconômicas dos dois países seguem trilhas quase opostas. Em entrevista ao Valor, o presidente do Banco Central russo, Sergei Ignatiev, revelou que, embora pague corretamente suas dívidas externas, incluindo àquelas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), não segue as orientações do organismo à risca, como faz o governo brasileiro. Ignatiev também considera que altas taxas básicas de juros são um mecanismo secundário no controle da inflação e prefere a versão russa de câmbio livre, onde ele é "planificado". O BC faz intervenções constantes, com compra ou venda de divisas para estabilizar a cotação da moeda, o rublo. O principal objetivo do Banco Central russo atualmente é controlar a cotação do rublo, sobrevalorizado pela constante alta do petróleo, que bate recordes diariamente. O país é um dos maiores produtores de petróleo do mundo e a solução até agora encontrada é a clássica compra de moeda estrangeira, o que exige aumento do volume de rublos, aumentando a inflação. Ignatiev espera "uma solução mágica para o problema", brinca ele, com a serenidade de quem trabalha para um pais que cresceu 8% em 2003. Leia os principais trechos da entrevista concedida ao Valor, de seu gabinete, num prédio centenário, mas completamente reformado, em Moscou. Valor: O rublo está demasiadamente valorizado nos últimos meses em virtude da alta do petróleo. Como o Banco Central pretende administrar esta situação para que a moeda atinja um valor adequado? Sergei Ignatiev: O petróleo está alto e outras matérias-primas, como o ferro, que a Rússia também exporta, trazem como consequência um balanço de pagamentos consolidado. Para prevenir a sobrevalorização do rublo, o Banco Central compra moedas estrangeiras no mercado. No início deste ano, as reservas do BC equivaliam a US$ 77 bilhões. Agora temos pouco mais de US$ 98 bilhões. Evidentemente que ao comprar divisas estrangeiras temos de emitir rublos e, assim, aumentamos a massa monetária. Valor: Por essa razão a taxa de inflação da Rússia está em cerca de 11%, mais alta do que a de outros países do Leste europeu e em desenvolvimento, como o Brasil? Ignatiev: Exato. Com isso complicamos nossa tarefa primordial que é combater a inflação. Este é um problema clássico. E uma característica de qualquer outro pais que participa do comércio internacional. Nós pretendemos encontrar uma solução mágica: uma taxa de inflação que baixe progressivamente e uma estabilização do rublo para não afetar setores da nossa economia. Valor: Apesar do alto índice da inflação, a taxa real de juro de vocês é baixa. O BC não recorre a este instrumento para reduzi-la? Ignatiev: Recorremos a este mecanismo, mas o processo de regulação das taxas de juros apresenta-se como secundário em relação à política monetária. O principal canal de entrada de dinheiro na economia continua sendo a aquisição, pelo Banco Central, da moeda estrangeira devido à conjuntura econômica favorável no exterior. Nós também refinanciamos os bancos comerciais e efetuamos as operações com títulos do Estado, além de captar depósitos dos bancos comerciais a favor do Banco Central. Tudo isso para esterilizar a liquidez excedente. Valor: A política do Banco Central não segue a receita do FMI, portanto, que sugere que este mecanismo seja usado num período, digamos, apenas emergencial? Ignatiev: O Fundo Monetário prefere o regime de câmbio livre e nós preferimos o regime planificado da moeda. O mercado de-termina seu valor, mas nós somos agentes ativos. Se a demanda por moeda estrangeira no mercado superar a demanda por rublo, nós intervimos para impedir a sobrevalorização do rublo. Não é raro termos de agir de forma contrária. Valor: Qual é a meta de inflação para o próximo ano? Ignatiev: Se valorizarmos o rublo em relação ao dolar em 2% isso vai afetar a inflação. Mas te-mos como meta chegar a 10%. No ano passado ela foi de 12%. É difícil de prever. Valor: Mas o Banco Central não adota metas para cada ano e com o objetivo de se atingir este índice administra sua politica monetária? Ignatiev: No nosso documento para o ano que vem temos como objetivo principal impedir a sobrevalorização do rublo. Para 2005, nos comprometemos a fazer tudo para impedir a cotação real do rublo acima de 7%. Mas tudo depende das condições exteriores, que podem comprometer nosso planejamento. Quem poderia imaginar que no ano passado o preço do petróleo fosse disparar? Nós achamos que as metas de inflação são um pouco sem prognóstico. Mas queremos chegar a uma inflação anual de 3% ao ano em algum momento. Valor: Muitos analistas criticam o baixo superávit fiscal ou a flexibilização da Rússia em relação a isso. Mas o governo tem uma posição diferente. Por quê? Ignatiev: O nosso orçamento federal teve superávit durante quatro anos consecutivos. No ano que vem teremos superávit de 2% em relação ao PIB. O que não é pouco e nos dá cobertura para as despesas do Estado. Muitos analistas afirmam que é preciso criar reservas preventivas para um eventual agravamento da situação externa. Este superávit alto também ajudaria a baixar a inflação. Mas analisamos diferentes cenários para a economia russa e desenhamos projeções de como se comportarão os preços em 2005. Então, a política econômica deste ano seguirá no ano que vem. O planejamento já foi aprovado pelo Parlamento. Mas não quero que pareça que estou me auto-elogiando aqui. Valor: Mas o Sr. não teme que a alta da inflação e a instabilidade da moeda possam comprometer o investimento direto estrangeiro? Ignatiev: O clima para investimento inclui baixa inflação, taxas de juros baixa, cotação da moeda nacional equilibrada, estabilidade do sistema bancário. A falta desses elementos é muito negativa para a atração de investimentos estrangeiros. Não te-mos esses fatores combinados. Valor: No Brasil, temos um risco-pais elevado, superávit na casa dos 5% e temos a segunda maior taxa básica de juros, de 16,25%. Ignatiev: Taxa assim não existe. Aqui temos uma taxa de 12%, mas a taxa real é quase zero, pois descontamos a inflação. Valor: O último relatório do FMI sobre a Rússia destacava que o sistema bancário do país passava por um período de nervosismo e que o escândalo da Yukos trouxe falta de confiança. As intervenções do BC estão tendo resultado positivo? Ignatiev: De modo geral, a realidade não é a desenhada pelo FMI. Julgo que a tendência dos últimos anos consiste na consolidação da confiança em relação aos bancos russos, tanto por parte da população, como dos agentes econômicos. Dados estatísticos mostram que aumentam vertiginosamente os depósitos da população nos bancos e aumentam igualmente as contas das empresas nacionais no sistema bancário. Valor: Isso significa que as medidas do Banco Central atenuaram a crise dos bancos, que começou no ano passado? Ignatiev: No verão do ano passado, tivemos o que os jornais chamaram de crise de confiança no sistema bancário. No meio do ano, o Banco Central revogou a licença de um banco médio por infrações identificadas na luta contra a lavagem de dinheiro. Valor: Mas isso mexeu com a confiança do mercado. Não mostra uma certa fragilidade do sistema? Ignatiev: Os bancos começaram a interromper os créditos mútuos e a paralisação criou dificuldades em outras áreas financeiras. A população começou a retirar seus depósitos, numa situação mesmo tensa. Tivemos que intervir com ações bastante determinantes. Valor: Quais foram as medidas mais drásticas? Ignatiev: Para aumentar a liquidez dos bancos, reduzimos as normas de reservas obrigatórias. Tambem criamos uma lei, por meio do Parlamento, que dava garantias de Estado aos depósitos até cem mil rublos da população. Essa tensão tinha como causa os boatos de que nem todos os bancos poderiam entrar no sistema de seguro de deposito criado por lei. Por isso, os depositantes tiveram medo, pois se o BC não admitisse a participação de seu banco no sistema, poderiam surgir problemas entre o banco e o cliente. Para tirar esse receio, foi definido de que nos bancos que não aderissem ao seguro, o BC pagaria a parte prejudicada. Valor: Voltando ao relatório do FMI, o Sr. acha que a situação está sob controle, mesmo com esta forte intervenção do BC? Ignatiev: A partir da segunda metade de agosto voltaram os depósitos da população. Valor: A desconfiança no sistema bancário pode ser considerada um efeito colateral da crise do fim da década de 90? Ignatiev: São tempos e causas diferentes. Valor: Mas o mercado ainda não esqueceu a crise russa. Ignatiev: Claro que no sistema bancário a memória psicológica é muito importante. Isso torna a administração mais difícil, mas não impossível. Depois dos dias difíceis de 1998, quem imaginaria um crescimento tão substancioso da economia?