Título: Nem sucesso, nem fracasso na cúpula com os árabes
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/05/2005, Opinião, p. A12

Excluídas as expectativas delirantes, a Cúpula América do Sul-Países Árabes foi um bom início de aproximação comercial entre os países das duas regiões. Em sua parte econômica, os frutos foram necessariamente modestos, mas promissores. Na agenda política, a declaração conjunta derrapou nas armadilhas previsíveis. As estimativas do governo para a melhoria e aprofundamento das relações econômicas com os árabes podem ser consideradas realistas. O fluxo de comércio do Brasil com a região, hoje de US$ 8 bilhões, pode crescer. Um esforço conjunto poderá levá-lo a algo entre US$ 15 bilhões e US$ 20 bilhões no médio prazo. Para atingir estes objetivos, houve uma costura positiva entre o Mercosul e o Conselho de Cooperação do Golfo, onde se agrupam alguns dos maiores produtores de petróleo do mundo - Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã. Foi firmada uma carta de intenções de parceria comercial cujo próximo passo será a confecção de uma lista de produtos que receberão preferências tarifárias. Os países agrupados no CCG importam mais de US$ 120 bilhões e a fatia das exportações brasileiras deve crescer substancialmente se as reuniões futuras forem conduzidas com seriedade e pragmatismo. Há dúvidas sobre se os mesmos objetivos não poderiam ser obtidos com uma reunião de nível ministerial, que circunscrevesse a cúpula a seus objetivos comerciais e evitasse riscos de um comprometimento político indesejável do Brasil. O governo brasileiro considera que boas relações políticas abrem as portas a boas relações comerciais. Há quem acredite, com bons motivos, que a ordem dos fatores é a inversa. A política seguida pela Rússia e pela China, que dá como favas contadas o poderio unilateral dos EUA e busca atingir interesses comerciais específicos, ainda que isto contrarie os interesses americanos, reforça essa crença. É certo que o Brasil correu riscos elevados, cuja contrapartida só poderá ser aferida no futuro. Os pontos políticos da declaração da cúpula ratificam, em boa parte, as posições conhecidas do governo brasileiro. Como a maioria das nações, o Brasil apóia a criação de um Estado palestino e a retirada de Israel dos territórios ocupados. Além disso, o país se opôs, como França, Alemanha e a direção da ONU, à invasão do Iraque. A aceitação desta posição brasileira pelos EUA indica que atritos desta natureza já foram incorporados, sem grandes ressentimentos, pela diplomacia americana. Os temores de que o conclave se inclinasse em direção a posições radicalmente anti-americanas eram, em boa dose, infundados. Entre os principais países árabes presentes à cúpula estavam tradicionais e fiéis aliados dos EUA, como o mais poderoso deles, a Arábia Saudita, seus vizinhos do Golfo Pérsico e Jordânia. Da mesma forma, pareceu exagerada a angústia de que uma posição favorável ao terrorismo pudesse emanar de países como a Arábia Saudita, hoje às voltas com ameaças da Al-Qaeda em seu próprio território, ou ainda de seus vizinhos do Golfo, cujos governos seriam desestabilizados com um abalo no poder saudita. A cúpula enfatizou o combate ao terrorismo "sob todas as suas formas e manifestações". Defendeu a criação do Estado palestino, ao lado do de Israel, de acordo com as resoluções da ONU. Se há um pecado na declaração conjunta, é o da omissão - não há referência à defesa da democracia como a melhor forma para se atingir os objetivos do desenvolvimento e da justiça social. Nesse ponto, a diplomacia brasileira continua a fechar os olhos a ditaduras, como as que prevalecem no Oriente Médio, China e Cuba. A declaração conjunta, dada a aversão dos governos árabes, não menciona o tema da democracia e beira o esdrúxulo na menção que faz ao Iraque. As eleições de janeiro, com vistas à constituição de um governo democrático, constitucional e federal, o primeiro em mais de meio século, mereceu um exótico parênteses - "se assim decidir o povo iraquiano". Era inevitável que a cúpula tomasse posições políticas e abrisse espaço para discursos contra os EUA, até porque reunia nações soberanas. O ônus que se joga na conta da diplomacia brasileira, porém, parece exagerado. É um erro que o Brasil não dedique igual empenho nas relações que têm peso decisivo na nova, ou velha, geografia comercial - com os EUA e a União Européia - e é um equívoco a prioridade conferida às relações Sul-Sul. Daí a classificar por princípio a aproximação com países que fujam do eixo hegemônico como um desastre é incorrer no erro oposto e apagar a memória da diplomacia brasileira.