Título: A credibilidade incompleta da política monetária
Autor: Márcio G. P. Garcia
Fonte: Valor Econômico, 13/05/2005, Opinião, p. A13

Recentemente, o ministro da Fazenda notou com propriedade que a maioria das análises sobre nossa política monetária critica a dose excessiva do medicamento (a alta taxa de juros), em vez de abordar as causas da resistência da doença ao medicamento (os fatores que reduzem a sensibilidade da inflação aos juros altos). É natural que assim seja. Afinal, uma inflação prevista da ordem de 6% não se afigura tão ruim assim. Já os juros altos, estes sim, incomodam muito. O que a maioria dos analistas parece supor implicitamente é que uma queda substancial dos juros permitiria nível de atividade mais alto sem elevar significativamente a inflação. Ou seja, a taxa de juros estaria em zona de ineficácia: se subir, não conseguirá reduzir significativamente a inflação; se cair, a inflação não aumentará muito. Portanto, melhor seria reduzir os juros e ter mais crescimento. Infelizmente, não parece haver base teórica ou empírica que justifique esta suposta "ineficácia" dos juros. O mais provável é que a redução dos juros elevasse a inflação. Talvez possa valer a pena mas, para a maior clareza da proposta, é preciso acompanhá-la do aviso de que a inflação vai subir. O mais importante, contudo, é atuar sobre as causas da resistência inflacionária aos juros altos. Para analisar os efeitos dos juros sobre a inflação, produção e outras variáveis (como câmbio e emprego), os economistas recorrem à idéia de canais de transmissão da política monetária. No Brasil, alguns desses canais estariam parcialmente obstruídos, impedindo que, frente a um dado aumento dos juros, a produção e a inflação caíssem tanto quanto em outros países. Em primeiro lugar, há uma série de efeitos que aumentam a demanda agregada, ou reduzem a oferta agregada, dificultando a ação da política monetária. Gastos fiscais e transferências pressionam a demanda agregada. A expansão e o barateamento do crédito, ainda que desejáveis no longo prazo, também aumentam a demanda no curto prazo. O aumento das exportações, igualmente desejável - oriundo da depreciação cambial passada e da desoneração tributária recente - também expande a demanda. Importações - oneradas recentemente com PIS e Cofins - ainda não aumentaram muito, o que deixa de ampliar a oferta como seria de se esperar face à apreciação cambial. Finalmente, o aumento do investimento produtivo, apesar de aumentar a oferta no futuro, também pressiona a demanda agregada no presente. E, como tem sido enfatizado, os financiamentos do BNDES não são afetados pela variação da taxa Selic. Além desses fatores, a indexação remanescente na nossa economia, representada principal, mas não exclusivamente, pelos preços administrados (que constituem quase 30% do IPCA), prejudica a ação da política monetária. Um componente adicional que ajuda a explicar a resistência da inflação brasileira aos juros altos está relacionado à limitada credibilidade da política monetária. Ainda que os juros sejam muito altos no presente, o importante para os agentes que fixam preços ou negociam salários é o que vai ocorrer no futuro com a inflação. Caso se considere provável que a atual política monetária vá ser relaxada no futuro, acarretando o aumento da inflação, os agentes serão muito mais resistentes a alinhar preços e salários às metas de inflação.

Autonomia operacional (não de objetivos) do BC é um complemento fundamental ao arcabouço institucional das metas para a inflação

Pesquisa que Alexandre Lowenkron vem conduzindo em sua tese de doutoramento na PUC-Rio, sob minha orientação, analisa a importância desse último componente. Inicialmente, calculamos a discrepância entre a inflação esperada um ano à frente e a meta de inflação. Mostramos, então, que esse desvio previsto da inflação futura em relação à meta é fortemente associado à surpresa de curto prazo da inflação, isto é, à diferença entre a previsão há um mês atrás para a inflação do mês e o número oficial divulgado. Ou seja, surpresas de curto prazo da inflação no Brasil têm grande correlação com as expectativas de inflação de médio prazo, mesmo quando se controla variações na taxa de câmbio. Fazemos os mesmos testes para outros países: Chile, Turquia, Reino Unido, México e Israel. Dos seis países, só no Brasil a surpresa inflacionária mostra-se significativa na determinação da expectativa de médio prazo da inflação. Conjeturamos que esta peculiaridade brasileira pode se dever a duas razões não mutuamente exclusivas: indexação remanescente e credibilidade incompleta da política monetária. Que há indexação remanescente, ninguém discute. O interessante é verificar se há, adicionalmente, efeito da credibilidade incompleta da política monetária. Fazemos isso através da observação de mercados de derivativos relacionados à inflação. Aqui temos que usar o IGP-M, devido à pouca liquidez de derivativos relacionados ao IPCA. Nossa hipótese é a de que, se o efeito da surpresa inflacionária de curto prazo sobre a expectativa inflacionária de médio prazo adviesse só da indexação, a surpresa deveria afetar apenas a expectativa de inflação, não devendo afetar adicionalmente o prêmio de risco que é cobrado para se proteger contra a inflação. A análise estatística indica que o prêmio de risco inflacionário é altamente correlacionado com a surpresa inflacionária. Portanto, o efeito da surpresa inflacionária sobre a inflação prevista deve-se, pelo menos em parte, à credibilidade incompleta da política monetária. A credibilidade incompleta da política monetária não pode ser comprovada ao se analisar o histórico das decisões do Copom. Afinal, estas têm sido excepcionalmente conservadoras. O que prejudica a credibilidade da política monetária é o risco de a atual postura ser revertida no futuro, abrindo caminho para o aumento da inflação. É notório o "fogo amigo" contra a política monetária. O apoio do presidente à política econômica, apesar de bastante forte, tem capacidade necessariamente limitada de conferir credibilidade por depender de ligações pessoais e não institucionais. Para aumentar a credibilidade da política monetária, permitindo que os juros reais possam ser reduzidos sem aumentar a inflação, seria fundamental que se completasse o arcabouço institucional do sistema de metas para a inflação, dando ao BC autonomia operacional (não de objetivos) para executar a política monetária.