Título: Por uma política externa coerente
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 13/05/2005, Opinião, p. A13

O fantasma de Joseph Stalin devia estar rondando a parada de segunda-feira que passava na Praça Vermelha de Moscou. Os sinais da nostalgia russa podem ter provocado um mal-estar momentâneo em George W. Bush, o presidente dos EUA, enquanto se perfilava diante do Kremlin, mas não é um retorno ao stalinismo na Rússia o tema que deve preocupá-lo com maior urgência. O problema imediato é que a relíquia mais desagradável daquela época está viva e causa nele uma terrível dor de cabeça. O incômodo está localizado na fronteira do extremo leste da Rússia, na Coréia do Norte. O governo dos EUA não possui uma política viável para lidar com ele. Evidências obtidas através de satélites, reveladas pelo Pentágono dos EUA na semana passada, indicam que esta ditadura miserável e corrupta está em preparativos para testar um artefato nuclear. Pyongyang declarou em fevereiro que já possuía armas nucleares. Mohamed ElBaradei, chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, diz que ela tem plutônio suficiente para ser convertido em cinco ou seis. A realização de um teste para demonstrar a sua capacidade terá "repercussões políticas desastrosas", acrescentou. Queiramos ou não, a determinação sanguinária de desenvolver capacidade nuclear é uma reação lógica à invasão do Iraque, pelos EUA, na busca de armas de destruição em massa. Saddam Hussein foi deposto porque não tinha nenhuma. Kim Jong-il não será apanhado da mesma forma. É possível que o ditador coreano não tenha intenção de usar essas armas jamais: isso poderia induzir a eliminação do seu país. Mas ele está falido e tem um histórico de vender armas perigosas. Pode existir o perigo de que até venha a vender armamentos nucleares a terroristas. Na costa oeste dos EUA (exatamente dentro do raio da Coréia do Norte) reina um estado de alarme considerável devido à ameaça de terrorismo nuclear e devido à aparente impotência da política externa dos EUA. Ao discursar no Instituto de Estudos Internacionais de Stanford na semana passada, William J. Perry, ex-secretário de Defesa no governo do presidente Bill Clinton, descreveu isso como "a mais grave ameaça ao nosso país". Sandy Berger, ex-conselheira de Segurança Nacional de Clinton, declarou que a crise na Coréia do Norte deve figurar no alto da agenda dos EUA. Michael Armacost, embaixador dos EUA no Japão no governo do pai de Bush e atualmente um ilustre pesquisador no Centro de Pesquisa da Ásia-Pacífico em Stanford, enxerga quatro opções para o presidente na questão da Coréia do Norte. Primeiro, ele poderia desferir um ataque militar contra as instalações nucleares em Yongbyon. O perigo é que a Coréia do Sul pagaria o preço se Kim retaliasse. Segundo, Bush poderia tentar uma mudança de regime. Mas ele não dispõe de informações confiáveis sobre como esse golpe poderia ser realizado. A China pode dispor de melhores informações, porém não manifesta nenhuma inclinação de usá-las. A terceira opção é tentar negociar um acordo mais eficaz que o obtido por Clinton, oferecendo estímulos e punições suficientes para persuadir Kim a abandonar a opção nuclear de uma vez por todas. Isso exigiria uma cooperação íntima com a China, que pode acenar com a punição de cortar a energia e o fornecimento de alimentos, mais Japão e Coréia do Sul, que detêm os estímulos do comércio e do investimento. As conversações entre as seis potências que poderão chegar a um acordo (a Rússia também está envolvida) estão num impasse, com Pyongyang exigindo conversações cara-a-cara com Washington. Bush não aquiescerá.

Obsessão de Bush pelo Iraque, o Oriente Médio e a guerra contra o terror impede formulação de estratégias para a Ásia

Por fim, Bush pode simplesmente concordar e deixar a Coréia do Norte manter capacidade nuclear. Isso certamente não é o que ele quer, mas acontecerá, se persistir a ausência de política. Uma coisa está clara em tudo isso: sem uma cooperação próxima com Pequim, Kim não poderá ser conduzido ao bom senso. Exatamente da mesma maneira que parecer existir um vácuo de política na questão da Coréia do Norte, porém, existe uma sensação de ambigüidade em Washington em torno da China. Parte do problema é o enfoque excessivamente centrado no Iraque, no Oriente Médio mais amplo e na "guerra contra o terror". Mesmo quando partem para missões pela Ásia, os representantes do governo dos EUA permitem que o terrorismo domine as suas pautas, embora ele seja um tema meramente secundário para os governos com os quais conversam. Isso não reflete a realidade geopolítica. "Se pudéssemos observar a partir de Marte, perceberíamos um deslocamento tectônico de poder, indo do Ocidente para o Oriente", diz Berger. A China agora é a terceira maior parceira comercial dos EUA. "Precisamos trabalhar de forma construtiva para moldar o nosso futuro com a Ásia, não simplesmente reagir a novas realidades. A América é uma grande potência do Pacífico, mas estivemos preocupados com o Iraque e com o terrorismo." Sem liderança, não haverá ninguém para conciliar as divisões existentes entre o Departamento de Estado dos EUA, que quer envolvimento com a China - especialmente sobre a Coréia do Norte - e o Pentágono, que vê a China como uma ameaça. Há também uma tensão entre os líderes empresariais dos EUA, que saúdam o comércio e o investimento crescentes, e políticos no Congresso, que estão cada vez mais tentados a aprovar projetos de lei protecionistas. Bush está distraído por sua ordem do dia de "democracia e liberdade" e não consegue imprimir uma liderança clara. "O relacionamento com a China geralmente sofre quando o presidente está envolvido de outras formas", diz Armacost. "O artigo mais escasso em Washington é a atenção do alto escalão." Os americanos tendem a ficar exaltados a respeito da China, seja contra, seja a favor. Quando a Casa Branca está distraída, os grupos de pressão ocupam o centro do palco. Talvez as extravagâncias impensadas de Kim ainda possam impor um deslocamento dos holofotes da atenção das superpotências de volta para a Ásia. Seria errado, porém, permitir que um Estado fora-da-lei venha a ditar as relações futuras com a China, Japão e o resto do mundo. É necessário fazer uma reavaliação abrangente da política dos EUA relativa à Ásia como um todo, e à China, em particular. Em Stanford, onde Condoleezza Rice costumava trabalhar antes de ir para Washington, ainda estão esperando.