Título: O desvairado otimismo chinês
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 17/05/2005, Opinião, p. A9

Este século está para a economia chinesa assim como o século passado esteve para a americana. Quem contesta essa tese costuma apontar três sérios riscos que deverão atrapalhar: bolha especulativa que assola os negócios imobiliários em Pequim e em Shangai, fragilidade bancária determinada pelo caridoso financiamento de empresas estatais e endêmica instabilidade provocada por tensões que decorrem do aumento das desigualdades entre peões e "chuppie" ("chinese-yuppie"), urbanos e rurais, litorâneos e interioranos. Contudo, a economia americana ficou 27 vezes maior no curso do século passado, malgrado a Grande Depressão, duas guerras mundiais, mais a longa lista de 21 recessões. E também havia engendrado imensas desigualdades sociais até os exuberantes anos 1920. Desde fevereiro a China já é o maior consumidor de produtos industriais e agrícolas, tendo subtraído aos Estados Unidos um título que detinham há quase cem anos. Também é o maior mercado de telefones celulares, com 310 milhões de usuários, e terá nos próximos meses o maior número de internautas, que já é de 134 milhões. Em 30 anos essa economia será o triplo da americana, estima a Goldman Sachs. No próximo meio século seu crescimento agregará à economia mundial uma riqueza equivalente à descoberta de quatro novas Américas, calcula "The Economist". E os chineses sabem que estão no centro do mundo. Mostram tanta confiança em seu futuro, que estrangeiros que lá residam logo são contagiados por imenso otimismo. Mas não é o potencial econômico que levanta dúvidas sobre o futuro da China. Ela até já mantém um relacionamento financeiro com os Estados Unidos do padrão que eles tiveram com a Grã Bretanha, no final do século XIX, que esta teve com Flandres na segunda metade do século XVIII, que por sua vez teve com Gênova no século XVI. Como sustentou há dez anos o premiado livro "O Longo Século XX" (Ed. Unesp, 1996), de Giovanni Arrighi, a questão é de outra ordem, pois nas três transições anteriores (todas no Ocidente), a nova superpotência econômica mundial também se tornou dominante no âmbito político-militar. Uma incógnita que causa tanto mais apreensão quanto mais se conhece as fortíssimas travas que os chineses precisariam romper para conquistar uma democracia política correspondente às necessidades institucionais desse galopante capitalismo desencadeado há apenas duas décadas pela pragmática corrente liderada por Deng Xiaoping. O cenário só piora se devidamente consideradas as bases naturais e as condições ambientais do sucesso econômico chinês. O consumo de eletricidade aumentou 15% somente no ano passado, apesar dos freqüentes e imprevisíveis racionamentos em 24 das 31 províncias. Boa parte dessa forma de energia é gerada por termelétricas. E 70% delas queimam carvão extraído de 28 mil minas, nas quais pelo menos 6 milhões de pessoas escavam em condições bem parecidas às do início da revolução industrial inglesa. Em 2004, como em 2003, os acidentes de trabalho nas minas foram mortais para pelo menos 6 mil trabalhadores.

Virar nova superpotência econômica exige da China a conquista de democracia política correspondente às necessidades capitalistas

A Organização Mundial da Saúde calcula que a poluição atmosférica mate 800 mil pessoas por ano, das quais dois terços na Ásia. E o carvão é o mais tóxico dos combustíveis. Não poderia ser mais assustadora a descrição feita pelo correspondente em Pequim do jornal italiano "La Repubblica", Federico Rampini, em seu fascinante livro "Il Secolo Cinese", que acaba de ser lançado pela editora Mondadori. "A cor deste país não é o amarelo, nem o vermelho de sua bandeira. É o preto da fuligem que escurece o pôr do sol, cobre as cidades de fumaça, tinge as águas dos rios e encharca de chuva ácida os arrozais" (pág. 223). Apesar de só ter dedicado três dos 33 incisivos capítulos a essa "outra face do boom", eles são mais do que suficientes para se perceber que a equação energética da China não tem como fechar. A pressão que suas importações já estão exercendo sobre o mercado petrolífero não passa de ínfima degustação do que ocorrerá nas próximas décadas se não surgir inovação que modifique substancialmente o balanço energético global. Os Estados Unidos jamais hesitaram em usar os mais diversos pretextos para fazer a guerra sempre que pressentiram eventuais dificuldades de aprovisionamento de petróleo. E isso ocorre com uma das mais avançadas democracias do planeta, e com um povo que procurou evitar o quanto pôde a entrada de sua nação nas duas guerras mundiais. O que pensar, então, deste século XXI, que será marcado pela expansão econômica de um país controlado por uma ditadura tecnocrático-militar, cujo exército popular "libertou" o Tibet em 1950, participou da guerra da Coréia em 1950-53, atacou a Índia em 1962, invadiu o Vietnã em 1979 e massacrou os estudantes democratas na praça Tienammen dez anos depois? Vladimir Putin pode ter feito ótima profecia ao aproveitar a recente comemoração da vitória contra o nazifascismo para lançar o slogan "guerra fria nunca mais". Com base no que está acontecendo na China, a principal conjectura que se pode fazer é que as guerras deste século poderão ser tudo, menos frias. É impossível prever quais serão suas características, mas não pode haver nada de mais desvairado do que privilegiar a hipótese de que este século venha a ser mais pacífico que o anterior. Apesar da revolução microeletrônica e das bio e nano tecnologias, que estão tornando cada vez mais imaterial a produção dos setores de ponta, a principal incógnita sobre o futuro do mundo continua a ser das mais rasteiras: como arranjar a energia necessária a uma população oficial de 1,3 bilhão de chineses, que ainda está para revolucionar seus padrões de consumo? Dos atuais 25 milhões de veículos, por exemplo, se passará a 200 milhões em apenas 15 anos. Um crescimento que poderá se estabilizar em torno de 250 milhões, diz o Ministério dos Transportes. Mas que tenderá a 800 milhões - o equivalente à atual frota mundial - se os chineses preferirem imitar os americanos.