Título: A Anvisa e a concessão de patentes farmacêuticas
Autor: Maristela Basso
Fonte: Valor Econômico, 18/10/2004, Legislação & Tributos, p. E-2

Por mais claro e óbvio que pareça ser o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nos pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos, ainda persistem alguns focos de resistência à participação de membros do Ministério da Saúde em tarefa tradicionalmente desempenhada unicamente por membros do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Também perseveram alguns equívocos de interpretação sobre o instituto da anuência prévia à luz do direito interno e do direito internacional, em especial no que diz respeito aos compromissos que o Brasil assumiu junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (a sigla em inglês TRIPS). Os pedidos de patentes farmacêuticas passaram a ter sua análise obrigatória pela Anvisa desde a Medida Provisória nº 2.006/1999, que criou a figura jurídica da anuência prévia, posteriormente consolidada pela Lei nº 10.196, de 2001, que alterou o artigo 229 da Lei nº 9.279, de 1996 - a Lei de Propriedade Industrial -, incluindo a alínea c: "A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Anvisa". Foi a Lei º 9.279/1996 que passou a regular no Brasil os direitos de propriedade industrial, neles incluídos as patentes, e incorporou em nossa ordem jurídica os padrões de proteção do TRIPS, integrante do Tratado da OMC. Com a anuência prévia, a intenção do legislador brasileiro não foi a de retirar competências originárias do INPI, nem tampouco restringir o direito aos pedidos de concessões de patentes farmacêuticas ou discriminar os produtos patenteáveis. Sua intenção foi a de facilitar o processo de análise desses pedidos de patentes dotando o órgão registrante - INPI - de técnicos originários de outro órgão do Executivo, capazes, por sua formação específica, de participar da análise dos requisitos legais indispensáveis dos processos de patentes de medicamentos. Não pretendeu o legislador, o que é obvio, criar um segundo procedimento de análise, nem muito menos discriminar produtos patenteáveis. Com a anuência prévia estabeleceu-se um procedimento moderno, eficiente e eficaz no qual o INPI e a Anvisa, conjunta e cooperativamente, examinam os pedidos de patentes farmacêuticas, evitando, assim, a concessão imerecida de patentes e o monopólio indevido. Não há, como se vê do texto da lei de 2001, qualquer expressão ou frase que leve a conclusão de que se trata de um duplo exame - de uma análise de confirmação ou não. É evidente que o espírito do legislador foi o de proteger o interesse social de possíveis riscos à saúde pública e ao desenvolvimento tecnológico do país. O INPI e a Anvisa, na análise desses tipos de patentes, formam um sistema único, um único corpo de examinadores a serviço da sociedade. Aperfeiçoar o processo de análise dos pedidos dessas patentes, e dotar o INPI de expertise, somente pode refletir positivamente no bem-estar dos consumidores e garantir os benefícios advindos dos avanços tecnológicos que já se encontram no estado da técnica. Por outro lado, é preciso reconhecer que o legislador não feriu nenhum princípio expresso ou implícito de direito interno ao criar o instituto da anuência prévia. É sabido que a Constituição Federal de 1988 determina que a propriedade deve atender a sua função social (artigo 5º, inciso XXIII) e que a ordem econômica deve obedecer ao princípio da função social da propriedade (artigo 170, inciso III), como garantia de justiça social. Claro está, em nossa lei fundamental, o reconhecimento da supremacia do bem-comum sobre o direito individual da propriedade. Nenhum argumento é capaz de resistir à lógica de que, nas relações entre Estado e indivíduo, os direitos fundamentais assumem posição de proeminência. Não há discricionariedade quando o Estado, por meio de seus órgãos, atua na tutela dos direitos à vida, nem mesmo na concessão ou não de patentes. Nesse sentido é claro o texto do artigo 197 da Constituição Federal.

O legislador não feriu nenhum princípio expresso ou implícito de direito interno ao criar a anuência prévia

Não sobrevive à análise criteriosa do direito interno nenhuma tese que tente afastar a anuência prévia da Anvisa por violação constitucional. É preciso pôr fim, em nível interno, às discussões que tentam, sem qualquer fundamento, macular o instituto da anuência prévia. Isso tem representado um desserviço às conquistas relacionadas à saúde pública em nosso país e, especialmente, ao acesso a medicamentos essenciais. Da mesma forma, a anuência prévia não viola nenhum princípio de direito internacional. Os direitos de propriedade intelectual foram construídos sobre os fortes pilares do direito internacional, tendo por base os princípios humanitários e a proteção dos direitos do homem. As críticas que se faz à anuência prévia no que diz respeito às obrigações que o Brasil assumiu junto à OMC também não prosperam frente às flexibilidades e salvaguardas do acordo TRIPs, justamente porque seus padrões de proteção devem atingir tanto países desenvolvidos quanto aqueles em desenvolvimento. Se não bastassem a clareza e a lógica dos objetivos e princípios do TRIPS, mais recentemente a Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública enfatiza que o acordo deve ser interpretado e implementado de maneira a garantir, nos Estados-membros, a proteção da saúde pública e a promoção do acesso a medicamento para todos. Vê-se, sem esforço, que, de acordo com a Declaração de Doha, os órgãos registrantes de patentes, como em nosso caso o INPI/Anvisa, não devem conceder patentes farmacêuticas contrárias ao interesse público e que possam dificultar o acesso a medicamentos essenciais. Não há dúvida, portanto, que a anuência prévia representa instrumento importante de garantia do interesse público, conquista fundamental da sociedade brasileira e exemplo para os demais países em desenvolvimento.