Título: A calmaria pode trazer mais apreensões que a tempestade
Autor: Odair Abate
Fonte: Valor Econômico, 17/05/2005, EU &, p. D2

Há alguns anos, li num dos livros do navegador Amyr Klink algo que talvez sirva como analogia à oscilação de humor que os mercados financeiros têm mostrado nos últimos tempos. A idéia era a seguinte: no meio do oceano, em um barco a remo, a calmaria poderia trazer maiores apreensões do que a própria tempestade, pois se os preparativos e o planejamento da viagem tivessem sido adequados, o navegador estaria preparado para enfrentar as condições adversas com as quais teria que lidar. A calmaria, por outro lado, poderia trazer desconforto, na medida em que eram desconhecidas a duração e a intensidade do mau tempo que mais cedo ou mais tarde poderia se manifestar. A analogia à qual me referi trata basicamente disso. Em período recente, muitas vezes se tem a sensação de que os agentes econômicos estão tão ansiosos com o que está por vir que temem, mesmo em momentos de relativa tranqüilidade, quaisquer sinais que possam ser indícios de que alguma ruptura esteja se formando no horizonte. De certa forma, isso não deixa de ser normal no mercado financeiro, volátil por natureza, mas os últimos meses têm sido exemplares. Poderíamos elaborar uma questão de múltipla escolha colocando as alternativas tidas como prováveis e que têm sido temidas pelos mercados, mesmo que por vezes sejam antagônicas: A) o crescimento econômico nos EUA poderia surpreender favoravelmente, produzindo pressões sobre os índices de preços e exigindo uma alta maior e mais rápida das taxas de juros por parte do Federal Reserve, que prejudicaria os emergentes; B) o crescimento econômico nos EUA seria bem menor do que se esperava e, portanto, teríamos fuga de capitais das bolsas e de países emergentes, mais uma vez punidos em direção aos títulos americanos ("flight to quality"); C) a estagflação ocorrer nos EUA, diante dos sinais negativos recentes observados nos indicadores macro e microeconômicos combinados com as perceptíveis pressões inflacionárias, diante da alta do petróleo; D) e, para o lado do bem, não aconteceria nada de muito novo em relação ao verificado nos últimos tempos e o ajuste da economia mundial se daria de forma lenta e gradual, a despeito dos cuidados que se deveria ter com a eventual descontinuidade no ritmo de crescimento na China e/ou com a própria elevação das cotações do petróleo, que já vêm tendo impacto no ritmo de expansão mundial neste ano. O que vai acontecer não é possível antecipar, mas os sinais mais recentes não sugerem que os três cenários mais pessimistas tenham necessariamente maior probabilidade de prevalecer. O mau tempo - petróleo à parte - está sendo mais temido do que sentido, o que não significa dizer que o reflexo disso para os mercados não seja perceptível e a ansiedade não prevaleça em muitos momentos. É bom lembrar que, com o aumento da aversão ao risco, os preços dos ativos e os países emergentes sofreram em boa parte do primeiro semestre de 2004, diante do receio de que a alternativa "A" colocada acima pudesse tornar realidade. No caso brasileiro, vimos o risco-país saltar de 396 para 805 pontos entre janeiro e maio, o real cair 15,5% frente ao dólar e a bolsa ceder 28% no período. Desta vez, praticamente um ano depois, refletindo uma mescla dos receios mencionados, os impactos no mercado local foram menos intensos, mas nem por isso menos expressivos. A bolsa recuou perto de 16% de seu ponto máximo em pouco mais de cinco semanas e o risco-país, depois de atingir o menor patamar em sete anos, subiu 121 pontos no período. O real resistiu muito bem refletindo o diferencial de juros interno e externo e os números extraordinários da balança comercial. É evidente que os temores não foram dissipados, apesar de os fatos quase sempre não corroborarem com a visão mais pessimista. Isso nos leva a sugerir que, apesar dos fundamentos econômicos internos positivos, um eventual aumento da aversão ao risco - especialmente se referendado por fatos concretos e não só por inquietações precipitadas - tende a afetar os preços dos ativos nos mercados locais com intensidade crescente ao longo dos próximos meses. Nos encontramos num ano pré-eleitoral que, queiramos ou não, tende a ser potencialmente mais instável. Nesse sentido, é preciso tentar minimizar os possíveis impactos de uma eventual deterioração do humor dos agentes econômicos por conta das incertezas internacionais. O pano de fundo lá fora pode ajudar se a alternativa "D" vier a prevalecer. Mas é impossível assegurar que isso vá acontecer, ainda que seja o quadro que nos pareça mais provável. E mesmo assim pelo simples efeito da "expectativa do tempo ruim que virá", o clima pode não ser tranqüilo durante todo o tempo. Por outro lado, a combinação de um ambiente de maior aversão ao risco, com as naturais incertezas eleitorais, dariam aos mercados o combustível para períodos de volatilidade. Nesses momentos, aumenta o risco de emergirem hipóteses sem nenhuma base racional, mas que podem afetar expressivamente por algum tempo os preços dos ativos e as alternativas mais apropriadas para os investimentos financeiros - especialmente se a lição de casa não tiver sido feita. Pode ser cedo para tratar desse tema, mas a "variável eleição" não pode ser desprezada. É preciso não só que os fundamentos econômicos sejam bons, mas que sejam emitidos sinais que reforcem as perspectivas de médio e longo prazo, especialmente no campo fiscal. Não parecem ter sido à toa as menções recentes que representantes do FMI fizeram em relação ao perfil, magnitude e prazo médio da dívida interna brasileira. Provavelmente estejamos apenas adicionando mais um risco à série de temores manifestados nos últimos tempos pelos mercados. Mas, vale acompanhar de perto.