Título: Estratégias comerciais externas do governo Lula
Autor: Pedro da Motta Veiga
Fonte: Valor Econômico, 18/05/2005, Opinião, p. A10

Decorridos quase dois anos e meio do mandato do governo Lula, sua política externa e sua estratégia de negociações comerciais são, com freqüência, objeto de elogios e alvo de críticas. A estratégia de negociação comercial tem linhas de continuidade e de inflexão quando comparada com a que prevaleceu sob Cardoso. É como se, frente a um portfólio de processos herdado do governo anterior, o novo governo tivesse redistribuído as fichas. Esta redistribuição beneficiou a OMC - que se tornou instância preferencial (quase exclusiva, se poderia dizer) de negociações com os países desenvolvidos - , as negociações Sul-Sul e o Mercosul, retirando ênfase das negociações preferenciais com os países do Norte. Quais são os elementos centrais da estratégia posta em prática pelo governo atual na área de negociações comerciais? Três deles parecem claros e vale observar que eles não necessariamente convergem para a definição dos meios e objetivos da política. Em primeiro lugar, há uma subordinação nítida da estratégia de negociações comerciais à política externa "tout court". Nos governos Cardoso, ensaiou-se um movimento de "autonomização" da estratégia comercial em relação aos objetivos mais gerais da política externa, a partir da idéia geral (sujeita a algumas qualificações pontuais) de que estas negociações e seus resultados não seriam capazes de comprometer aqueles objetivos, mas poderiam dar alguma contribuição positiva à sua consecução. No governo atual, este movimento de "autonomização" foi revertido e as negociações são avaliadas em grande medida segundo critérios políticos, entre os quais a clivagem Norte-Sul aparece como um critério de primeira grandeza. Em segundo lugar, a estratégia de negociações comerciais é instrumentalizada domesticamente para remediar, pelo menos em parte, o desgaste causado junto ao eleitorado do PT pela adesão governamental à ortodoxia macroeconômica. Neste sentido, a política de negociações comerciais é um mecanismo de legitimação política do governo e este fato impõe limites claros à flexibilidade que o Brasil pode demonstrar em negociações com países desenvolvidos. Em terceiro lugar, a estratégia governamental internalizou e deu prioridade às demandas de liberalização dos mercados agrícolas, que traduzem essencialmente a emergência de um agribusiness voltado para a exportação e altamente competitivo. Estes três elementos domésticos moldam a estratégia brasileira, que é favorecida por um fator externo: a marcada mudança no ambiente em que ocorrem as negociações comerciais. O final da última década do século XX assistiu à crise do consenso pró-liberalização comercial e à emergência de uma percepção pessimista da globalização, em que temas relacionados ao desenvolvimento, ao combate à pobreza e às clivagens Norte-Sul ganharam destaque. Este novo ambiente é muito mais permissivo em relação a estratégias como a seguida pelo atual governo do que o era aquele vigente até meados da década de 90, e isto confere maior legitimidade externa à estratégia brasileira de negociação comercial (e à própria política externa). Como o ambiente externo não condiciona - no sentido de restringir opções - a estratégia brasileira, esta resulta fundamentalmente do jogo entre os fatores condicionantes domésticos. E este jogo tende a opor, de um lado, os dois primeiros fatores apontados acima, de outro, o terceiro fator. Esta tensão se manifesta intensamente nas negociações com países desenvolvidos.

Críticos questionam se clivagem Norte-Sul pode ser fonte de alta do capital político do Brasil na cena internacional

Enquanto a subordinação da estratégia de negociação a uma política externa baseada na lógica da oposição Norte-Sul e o uso desta política para fins de legitimidade doméstica desestimulam a busca de acordos comerciais com os países desenvolvidos - e, em primeiro lugar, com os EUA - a pressão ofensiva do agribusiness vê nestes acordos uma oportunidade insubstituível de acesso aos grandes mercados do Norte. O resultado líquido das tensões existentes entre estes fatores é uma estratégia de negociação comercial que pretende fazer da OMC a instância praticamente exclusiva de negociação com os países desenvolvidos, e demonstra baixa disposição para firmar acordos preferenciais com estes países. Por outro lado, o jogo dos fatores apontados torna mais aceitável para os negociadores brasileiros a hipótese de pagar, com concessões em áreas como bens industriais e serviços, o preço pelos ganhos a serem obtidos na agricultura. Outra resultante é a decisão de utilizar os acordos comerciais Sul-Sul de alcance muito limitado, em termos econômicos, como instrumento de construção de coalizões que só adquirem sentido pleno dentro de uma lógica de confrontação Norte-Sul em instâncias multilaterais (OMC) ou em negociações preferenciais (ALCA). O somatório destes movimentos tem sido, quando avaliado em termos comerciais, muito limitado, gerando críticas vindas dos setores que têm interesse ofensivo nas negociações preferenciais com países desenvolvidos e de segmentos da opinião pública que criticam os pressupostos políticos da estratégia de negociação comercial. No que se refere ao primeiro tipo de crítica, a cobrança de resultados concretos, de curto prazo, das iniciativas diplomáticas é uma decorrência natural do protagonismo que os temas econômicos adquiriram na política externa brasileira. Este tipo de crítica traduz a percepção de que os resultados econômicos da política externa não podem mais se reduzir àqueles perseguidos na época do nacional-desenvolvimentismo (a prevenção de danos e ameaças externas), mas devem incluir a geração de oportunidades externas para a economia brasileira. No que se concerne o segundo tipo de críticas, estas questionam a viabilidade (política) das hipóteses que fundamentam a estratégia: a clivagem Norte-Sul pode ser fonte de um aumento do capital político do Brasil na cena internacional? É possível operacionalizar estratégias Sul-Sul que vão além de iniciativas pontuais como o G-20 quando as clivagens entre países em desenvolvimento se explicitam cada vez mais nas negociações multilaterais e preferenciais? Não por acaso tais críticas atacam precisamente a distância entre a retórica da política externa e os recursos de poder que estariam efetivamente à disposição do Brasil.