Título: A política de informática continua equivocada
Autor: Claudio Haddad
Fonte: Valor Econômico, 20/05/2005, Opinião, p. A15

Nos anos setenta, uma aliança entre ideólogos que associavam a soberania nacional ao domínio da produção de computadores, com alguns empresários que buscavam o lucro através de privilégios cartoriais, produziu uma legislação que proibiu a importação de computadores e software. Esta política, que atrasou o desenvolvimento do país, foi em muito minorada pela abertura comercial a partir de 1993. A atual política de informática, cuja nova vertente é o programa PC Conectado, infelizmente vai pelo mesmo caminho da anterior. Em qualquer política ou plano de ação, o fundamental é primeiro definir o foco. Múltiplos objetivos inevitavelmente desperdiçam recursos escassos e muitas vezes levam ao fracasso. Logo, a primeira pergunta relevante é: qual o problema principal no que diz respeito à informática no Brasil? Creio que todos, inclusive o governo, a julgar pela exposição de motivos que embasa a política de informática, irão concordar que é a inclusão digital. É o acesso da população, em condições de baixo custo, a computadores pessoais; é o treinamento em seu uso e sua total integração à rede nacional e internacional. Ou seja, o foco deve ser no usuário e não no meio. Assim sendo, o objetivo primário da política de informática deveria ser o de reduzir o máximo possível o preço do hardware e do software para o consumidor, deixando que ele, de livre escolha, decida que equipamento e programas usar. Foi esta a estratégia seguida pela Índia, que aboliu todos impostos federais, inclusive tarifas de importação, sobre computadores e programas. Isto, associado ao grande número de indianos trabalhando na Califórnia e ao fato de a língua inglesa ser de uso corrente na Índia, fez com que esta exportasse no ano passado US$ 17 bilhões em software, contra os nossos ínfimos US$ 235 milhões. Já no Brasil, os eixos da política são dois: o estímulo à produção nacional de hardware e o programa PC Conectado, que visa desenvolver o computador popular. O primeiro é baseado em uma plêiade de instrumentos: redução integral do IPI e da Cofins, prorrogação dos incentivos da Zona Franca de Manaus até 2019 e tarifas de importação reduzidas para componentes - enquanto o produto final importado arca com uma tarifa de 20%, acima da média brasileira, um IPI de 15%, Cofins e demais taxas. Dado que a tarifa incide sobre o preço incluindo frete, e que boa parte dos custos do computador são componentes importados, montados no país, a proteção efetiva ao produto nacional deve estar perto de 100%. Não à toa, o volume contrabandeado ainda é alto, o mercado cinza sendo estimado em 74% das vendas totais ("O Estado de S. Paulo", Economia, 'Medida deve ajudar a reduzir o mercado ilegal', 13/05/05). A ênfase na produção nacional de hardware, que nada mais é do que uma "commodity", torna os computadores mais caros e menos acessíveis ao usuário, retardando a absorção de novas tecnologias e modelos em função da escala ainda restrita do mercado interno e aumentando os custos do treinamento e da educação em geral. O modelo beneficia poucos produtores e contrabandistas, às custas da população e do desenvolvimento educacional e científico do país. Já o segundo eixo da política trata do computador popular, a preços baixos, que seria incentivado e financiado a taxas de juros subsidiadas com recursos de bancos oficiais. A motivação é louvável, mas a recomendação estratégica é baseada em conceitos discutíveis e marcada por forte componente ideológico, que mais uma vez deverá desperdiçar recursos e atrasar o país.

PC Conectado é baseado em conceitos discutíveis, com forte componente ideológico, o que deve acarretar desperdício de recursos

O programa parte do princípio de que o PC popular deve ser movido apenas a software livre, uma vez que "as políticas de inclusão digital devem romper com a política de aprisionamento dos megamonopólios privados" e que "não é correto utilizar dinheiro público para formar e alfabetizar digitalmente os cidadãos em uma linguagem proprietária de um monopólio privado" ("Inclusão Digital, Software Livre e Globalização Contra-Hegemônica", em www.softwarelivre.gov.br .). O software livre é um produto em expansão. Ele é acessível a todos e milhares de programadores, boa parte dos quais patrocinados por empresas rivais da Microsoft, contribuem para seu desenvolvimento e manutenção. Entretanto, ele não sai de graça. A vantagem de ser livre tem de ser pesada contra uma manutenção mais incerta, alguns problemas de compatibilidade e vulnerabilidade e um desenvolvimento sujeito a riscos, uma vez que seus benefícios não são capturados diretamente por ninguém. Se ele é tão superior, por que ainda não foi adotado majoritariamente pelas empresas privadas, governos e indivíduos? Por que forçar a população mais carente, alvo da política, a adotar um programa diferente dos utilizados no mercado de trabalho e nos outros países do mundo? Ademais, que diferença objetiva existe entre pagar por uma licença de software ou pagar royalties sobre direitos autorais ou sobre uma patente industrial? Que efeito isto pode ter sobre o potencial de desenvolvimento de software no Brasil, que para ter valor comercial e ser exportado, tem de ser proprietário? A questão é muito importante para ser decidida por ideologia ou por uma cruzada contra a Microsoft e o sistema internacional de patentes. Ao custo previsto para o computador popular projetado (R$ 1,4 mil), compra-se no varejo internacional um equipamento superior, já equipado com um sistema operacional que pode, a critério do usuário, ser substituído pelo livre. No atacado, diretamente da fábrica, o preço é muito mais baixo. Se o produto vier sem sistema operacional seu custo se reduz ainda mais. Tecnologias ditadas por governos raramente funcionam. Um exemplo foi a rede Minitel, desenvolvida na França nos anos 80 para privilegiar a tecnologia nacional. Ao início parecia funcionar, mas com o surgimento da Internet ela, por ser incompatível, ficou obsoleta. Além de se perder todo o investimento feito, a política retardou o desenvolvimento tecnológico da França. Em 1998 apenas 20% dos franceses tinham computador, contra 40% dos americanos e somente 2% dos domicílios estavam ligados à Internet. Política industrial deve ter foco claro e ser a mais neutra possível. A política de informática brasileira erra nos dois critérios.