Título: No banco dos réus do Conselho de Medicina
Autor: Seixas, Luiza
Fonte: Correio Braziliense, 05/04/2010, Brasil, p. 8

O casal Laci e Fernando comemora julgamento de neurologistas, psiquiatras e ortopedistas do Exército no CRM do Distrito Federal. Os médicos militares são acusados de cometerem crimes éticos

O julgamento de 18 médicos pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) será acompanhado de perto pelos dois principais personagens que se dizem vítimas de perseguição dos profissionais de saúde. O sargento Laci Marinho de Araújo e o ex-militar Fernando Alcântara de Figueiredo comemoraram a decisão do CRM-DF em avaliar o comportamento de neurologistas, psiquiatras, ortopedistas e clínicos-gerais acusados de crimes éticos. O ato teria ocorrido durante o tratamento de Laci, que ficou conhecido em maio de 2008 depois de ter assumido relacionamento homossexual com Fernando.

Aconselhado por seus advogados a não falar com a imprensa, pois ainda faz parte do Exército e precisa evitar qualquer outro tipo de discriminação, Laci, por meio de seu companheiro, afirmou que essa é uma vitória não só para ele, mas para toda a sociedade. ¿Eu e Laci acreditamos que o nosso caso é mais do que uma luta pelos direitos dos homossexuais, é um caso de direitos humanos mesmo. E a sociedade tem uma visão deturpada a respeito da atuação dos CRMs, pois eles, dificilmente, ficam contra os médicos, a não ser que envolva morte. E durante reunião do conselho, todos os membros votaram por acatar a denúncia. Isso é inédito¿, disse Fernando.

Ele denunciou que por muito tempo os médicos do Exército forjaram laudos, várias vezes sem a presença de Laci, dizendo que ele tinha capacidade plena para continuar na atividade, sendo que médicos civis apontavam para uma possibilidade de ele ter esclerose múltipla. ¿Os militares inventavam que ele tinha depressão por acreditar que estava sendo perseguido. Mas a gente descobriu que havia uma ordem superior lá dentro mandando dar alta médica. Eu não conseguia entender como uma pessoa que não tinha condições nem de levantar da cama podia ter alta. Descobrimos, depois, que ele tem uma doença rara, esclerose do lobo temporal¿, disse. Quando os militares descobriram a relação de mais 10 anos, a perseguição aumentou, segundo Fernando.

¿Antes a perseguição existia, pois, eu, Fernando, tinha feito algumas denúncias políticas lá dentro. Depois da descoberta, tudo piorou. Temos gravações em que os médicos afirmam essa perseguição. A coisa é tão suja que os conselheiros consideraram também como uma tortura psicológica¿, completou. A intolerância ao fato foi tão grande, segundo Fernando, que o Exército decidiu separar os dois e transferir um para cada estado.

Laci foi para Osasco (SP) e Fernando para São Leopoldo (RS). Portanto, a dupla conseguiu na Justiça o direito de permanecer em Brasília. ¿Depois de todos esses episódios, temos que comemorar a decisão do CRM. Agora, outras pessoas que vivem a mesma situação lá dentro não vão ter mais medo de denunciar. E nem a gente vai ver mais casos de pessoas que se suicidam, pois não aguentam tanta pressão¿, disse Fernando. Ele comemorou também o fato de que a Procuradoria da República no DF já começou a processar os envolvidos.

Decisão inédita O advogado de Fernando e Laci disse ao Correio que o julgamento do CRM é uma medida inédita. Segundo Lúcio França, os médicos militares ficam sob proteção de uma Lei nº 6.681/79(1) que foi criada na época da ditadura e não são enquadrados no Código de Ética Médica. ¿Desde aquela época eles assinavam laudos de tortura, por exemplo, a mando dos militares superiores. Pior do que isso era o fato de que eles participavam da tortura para atestar se a pessoa era capaz de aguentar o sofrimento. Como eles tinham essa lei, que vigora até hoje, não se preocupavam com processos éticos¿, afirmou. Por isso, ele classificou o ato do CRM como uma vitória. ¿É sinal que as coisas no país estão avançando¿, completou.

Agora, França quer tentar a mesma vitória perante o conselho do estado de São Paulo. De acordo com ele, após participar de um programa de televisão em São Paulo para reafirmar a homossexualidade, Laci foi preso por ter sido considerado desertor das Forças Armadas. Nesse tempo, como destacou o advogado, o sargento foi discriminado da mesma forma. ¿Se conseguirmos, será mais uma vitória. Não só de Laci, mas de todas as pessoas vítimas desses procedimentos. Os direitos dos pacientes precisam ser respeitados¿, completou.

O Correio tentou entrar em contato com os conselheiros do CRM, mas a assessoria informou que até que seja julgado, eles não podem se manifestar sobre o caso. De acordo com o Código de Ética Médica, ¿o processo ético profissional, nos conselhos de medicina reger-se-a pelo código de ética médica e tramitará em sigilo processual¿. A assessoria adiantou que, se condenados, esses médicos poderão receber desde uma simples advertência e censura ou até suspensão ou cassação do registro profissional. Os advogados dos acusados têm um prazo de 30 dias para apresentar a defesa.

1 - Livres de ações Art. 5º ¿ Os médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares, no exercício de atividades técnico-profissionais decorrentes de sua condição militar, não estão sujeitos à ação disciplinar dos conselhos regionais nos quais estiverem inscritos, e sim, à da Força Singular a que pertencerem, à qual cabe promover e calcular a estrita observância das normas de ética profissional por parte dos seus integrantes.

Se conseguirmos, será mais uma vitória. Não só de Laci, mas de todas as pessoas vítimas desses procedimentos¿

Lúcio França, advogado do sargento Laci Marinho de Araújo

O número 18 Número de médicos militares que serão julgados pelo Conselho Regional de Medicina do DF

Memória Prisão em rede nacional

Em maio de 2008, numa entrevista bombástica à revista Época, os sargentos do Exército Laci de Araújo e Fernando Figueiredo assumiram que viviam juntos, em união estável, desde 1997. A revelação abriu uma crise dentro das Forças Armadas. Mas a gota d¿água ocorreu dias depois, quando o casal apareceu no programa SuperPop, apresentado por Luciana Gimenez, na Rede TV, ao vivo, reafirmando a relação homossexual.

Enquanto a atração televisiva se estendia além do horário normal da programação, devido à grande audiência, a Polícia do Exército cercava o prédio da emissora, em Barueri, Grande São Paulo, para efetuar a prisão do sargento. A apresentadora se disse assustada com a ação. ¿Em sete anos de SuperPop, é a primeira vez que passo por uma situação dessa¿, afirmou na época.

A chegada do carro militar foi mostrada pelas câmeras do programa. O sargento Laci se desesperou ao saber o que estava ocorrendo. ¿Eu vim em rede nacional para resguardar a minha vida porque a televisão atinge mais pessoas do que a revista. Se eu for preso, eu vou morrer, será queima de arquivo¿, declarou o militar, ao vivo. Ao que Luciana respondeu, também demonstrando aflição: ¿O que eu posso fazer? Você veio aqui por livre e espontânea vontade¿.