Título: O que se pretende com a CPI dos Correios?
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2005, Política, p. A8

O velho chavão cabe com uma luva na provável CPI dos Correios: crises políticas contêm riscos e oportunidades. O desafio dos atores políticos é fazer com que as ameaças pavimentem o caminho para as necessárias mudanças. Este lembrete é válido tanto para o governo Lula como para a sua oposição, pois, dependendo da forma como se comportem daqui para diante, colherão melhores frutos ou serão vistos como oportunistas. Para ambos os lados da luta política, o cenário positivo estará vinculado à capacidade de atuarem em prol de objetivos coletivos e de reformas institucionais que ultrapassem seus interesses imediatos. Em outras palavras, dessa investigação parlamentar poderá nascer uma proposta de administração pública diferente de nosso modelo patrimonialista, ou, ao contrário, instalar-se um mero palanque eleitoral, marcado pelo denuncismo barato e pelas chantagens em troca de cargos e verbas. Na segunda hipótese, a maior perdedora será a classe política mais séria e comprometida com a democracia, com elementos em diversos partidos e com seu núcleo hegemônico concentrado principalmente no PT e no PSDB. O mecanismo da Comissão Parlamentar de Inquérito pode ser uma das formas mais eficazes do Congresso Nacional exercer suas funções precípuas de fiscalizar o Poder Público e, sobretudo, de sugerir ou criar estruturas institucionais que evitem os problemas detectados. Várias CPIs cumpriram os dois papéis. Basta recordar a dos Precatórios, que desmascarou o uso indevido de títulos públicos e propôs alterações importantes na legislação pertinente, ou então a dos Anões do Orçamento, que descobriu muitos casos de corrupção pela via das emendas parlamentares e, a partir disso, modificou aspectos perversos presentes, à época, na elaboração da peça orçamentária. Entretanto, outras CPIs redundaram num verdadeiro fiasco, dado que não trouxeram grandes ganhos em termos de investigação de denúncias e, especialmente, porque não levaram à alteração das instituições que geraram os episódios inspiradores da abertura do processo. A vinculada ao caso do Banestado é o exemplo mais cabal de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que se tornou uma mera luta entre petistas e tucanos e, ao final, não levou a nenhum avanço na legislação. Este caso deve ser tomado como o que não deve ser uma CPI dos Correios. O governo Lula não deve atuar contra a CPI dos Correios. Antes de tudo, porque o episódio já levou a tal uma indignação pública que qualquer tentativa de bloquear uma investigação parlamentar será vista de forma negativa pela população. Em vez disso, a cúpula petista e seus aliados no Congresso devem fazer com que a comissão de inquérito se atenha inicialmente a seu fato gerador. Se houver mais denúncias baseadas em imagens ou documentos, e não em ilações, envolvendo outros cargos em estatais, o Executivo não pode ter medo das conseqüências. Deve, ao contrário, adotar dois comportamentos que respondem, democraticamente, tanto aos seus interesses como aos da sociedade. Um deles é colocar a Polícia Federal à disposição do Legislativo para levar a melhor termo a apuração. Quanto mais o governo Lula atuar efetivamente neste caso e se engajar na luta contra a corrupção, menos os oposicionistas poderão transformar este processo numa bandeira eleitoral, por um lado, e os eleitores terão menos razões para perderem a confiança no presidente, por outro.

Objetivo final deve ser reforma administrativa

Além disso, o governo Lula poderá fazer do limão uma limonada. Ou seja, terá a chance de discutir mais seriamente a forma como se dá a distribuição dos cargos de alto escalão do governo federal, compartilhando esta responsabilidade com o Congresso Nacional. O fato é que enquanto o fisiologismo puder alcançar o enorme número de postos hoje distribuídos, os governos serão reféns de chantagens, ao que se soma a maior possibilidade de corrupção e da ineficiência governamental - problema este que precisa ser colocado também na agenda, para não ficarmos apenas na importante, mas insuficiente, questão ética. O que hoje se dá nos Correios aconteceu, em maior ou menor medida, em outros mandatos presidenciais. A grande vantagem atual é a democracia, com seus instrumentos de fiscalização e controle, como a imprensa livre e o Ministério Público, pois no regime autoritário o Poder Público era tomado pelo patrimonialismo e pela roubalheira tanto ou mais do que agora. É claro que o governo petista enfrentará muitas resistências para transformar a denúncia de corrupção nos Correios num meio para reformar profundamente a administração pública brasileira. Afinal, para iniciar esta profunda mudança, dependerá da ajuda dos outros partidos aliados. Por exemplo, do PTB, que poderia começar sua colaboração para o aperfeiçoamento institucional do país colocando todos os seus cargos de segundo e terceiro escalão em estatais à disposição do presidente Lula. Uma reforma institucional mais profunda na distribuição dos cargos públicos passa, contudo, também pela oposição. Ela terá de discutir as bases do atual modelo presidencialista, presente não só no governo federal como também, e em maior medida, nos Estados e municípios, muitos deles governados pelos partidos oposicionistas. Dito de outro modo, PFL e PSDB estão dispostos a modificar a administração pública em todos os níveis de governo, reduzindo o número de postos de livre nomeação no Estado brasileiro? Caso não estejam dispostos a isto, pensam a CPI dos Correios apenas como um palanque para criticar o governo Lula, o que é muito ruim para o aperfeiçoamento de nossa democracia e pior ainda para tucanos e pefelistas, pois poderão manchar sua imagem junto aos formadores de opinião. A CPI dos Correios, em suma, pode ser uma ótima oportunidade para os congressistas melhorarem sua reputação junto ao eleitorado. Mas só terão tal benefício caso adotem um comportamento que pense em reformas nas atuais instituições. Se a investigação virar um jogo sem fim de acusações com propósitos eleitorais, toda a classe política será atingida, indiscriminadamente. E os eleitores a punirão com o voto em 2006.