Título: América Latina vive "estresse" hídrico, aponta estudo da Cepal
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2005, Brasil, p. A2

A América Latina e o Caribe, região com um dos mais fartos estoques de recursos hídricos do planeta, enfrenta uma situação extremamente paradoxal: sem dinheiro para investir em serviços públicos de saneamento e tratamento de água, uma quantidade crescente de áreas privilegiadas pela existência de rios perenes é afetada por riscos de desabastecimento e seus habitantes mal alcançam o patamar mínimo de consumo sugerido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Países como Barbados e Haiti, uma grande parte do Peru e algumas zonas do México e da América Central se encontram em estado de "estresse hídrico", afirma a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em estudo recém-divulgado. A disponibilidade de água nessas áreas não ultrapassa 1.700 m³ por habitante/ano. Normalmente, essa relação é de 38.200 litros por ano na América Latina - seis vezes mais que a média mundial. A ONU recomenda um mínimo de mil m³ por habitante/ano. O Brasil não é citado diretamente como tendo áreas em situação de estresse hídrico, mas o estudo faz referência à eliminação de "bosques naturais" em importantes bacias hidrográficas, facilitando o assoreamento dos rios e abrindo espaço para o aumento dos níveis de poluição. No fim dos anos 90, haviam desaparecido 71% das matas originais na bacia do rio Paraná, 66% do rio São Francisco e 50% do rio Tocantins. Na bacia do rio Madalena (Colômbia), esse índice chega a 90%. No rio Uruguai, alcança 92%. Além do desmatamento, três fatores exercem pressão sobre a qualidade da água: a crescente urbanização, a expansão da indústria e a mecanização da agricultura. De acordo com o estudo de Fernando Sánchez Albavera, diretor da divisão de recursos naturais e infra-estrutura da Cepal, a confluência desses fatores leva à exigência de maior cobertura dos serviços públicos de saneamento e aumenta a necessidade de substâncias químicas para tratamento da água. A baixa capacidade de investimento dos governos da região, no entanto, compromete ações voltadas para melhorar a qualidade da água. Diante das restrições, uma alternativa parece inevitável no médio prazo, inclusive no Brasil: a cobrança pelo uso da água tirada dos rios e mananciais. Trata-se de implementar uma taxa sobre a captação feita por companhias de saneamento, industriais e agricultores. Não é cobrada diretamente dos consumidores, embora as empresas de tratamento de água tenham a tendência de repassar a despesa. No Brasil, há apenas uma experiência desse tipo: na bacia do rio Paraíba do Sul, interior de São Paulo. A arrecadação com a cobrança, que começou em março de 2003, chegou no ano passado a R$ 6,6 milhões. Todo mundo que capta do rio mais de um litro por segundo tem de pagar. Quem despeja a água de volta sem tratá-la paga mais - a tarifa máxima é de R$ 0,02 por metro cúbico captado. Segundo o diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), José Machado, outras quatro bacias hidrográficas estudam a cobrança pelo uso da água: PCJ (Piracicaba-Capivari-Jundiaí), Rio Doce, Verde Grande e São Francisco. Dessas quatro, a mais avançada nos estudos é a bacia do PCJ. Machado antecipa que a agência deverá revisar as outorgas concedidas para captação de águas do rio e auxiliar na implementação de um plano de recursos hídricos. O diretor-presidente da ANA defende a cobrança pelo uso da água, mas ressalta que isso deve ser feito dentro de um conjunto de ações. Além da recuperação de matas ciliares e investimentos maiores em tratamento de esgoto, argumenta que é preciso estabelecer um "sistema de pactuação" com a sociedade civil. Os críticos expressam preocupação com a possibilidade que os recursos oriundos da cobrança não sejam destinados ao objetivo fixado. Mas a arrecadação da taxa, já feita no caso do rio Paraíba do Sul, é integralmente repassada ao comitê de bacia, que define com autonomia a aplicação dos recursos. "Se a população se envolver nos comitês de bacia e entender a cobrança como uma taxa condominial, ela não se tornará mais um imposto", afirma Machado. É aí que pode estar um dos maiores obstáculos. Pesquisa encomendada ao Ibope pela organização não-governamental ambientalista WWF, realizada em novembro de 2004, revelou que 70% dos mil brasileiros entrevistados em vários Estados nunca ouviram falar nos comitês de bacias hidrográficas. Dos que ouviram, dois terços afirmaram não saber para que serve um comitê. O levantamento demonstrou uma visão distorcida do brasileiro quanto aos responsáveis pelo consumo de água. Ele aponta a indústria como maior consumidora, embora seja a agricultura quem consome cerca de 70% dos recursos hídricos. Há um dado animador, porém, na pesquisa: 74% dos entrevistados disseram concordar com a cobrança pelo uso da água e 65% reconhecem que poderiam consumir menos. A necessidade de mudança nos hábitos de consumo é a mensagem implícita deixada pelo estudo da Cepal. Para poder controlar uma grande proporção de água doce no planeta, foram construídas, desde 1950, represas e barragens que regulam mais de 10 mil km³ de água. "A redistribuição dessa massa de água afetou a taxa de diminuição da velocidade de rotação da Terra", sublinha o estudo.