Título: "A qualidade do crescimento vai piorar"
Autor: Denise Neumann e Raquel Salgado
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2005, Brasil, p. A4

De tempos em tempos, a economia dá sinais ambíguos, como agora. Na média da indústria, a produção parou de subir, mas as vendas do comércio ainda crescem, enquanto a confiança do consumidor despencou em maio. Para entender o que está acontecendo é preciso desagregar todos os dados, separar capital e interior, consumo e investimento, venda doméstica e exportação. Aí os sinais ficam um pouco mais claros, diz o economista-chefe da corretora Convenção, Fernando Montero. A prática de esmiuçar dados foi reforçada nos anos em que Montero esteve na secretária de Política Econômica do Ministério da Fazenda. E desta experiência vem o aviso: o Banco Central e muitos analistas estão subestimando a desaceleração que vem do interior. A quebra de safra e os menores ganhos na agricultura já puxaram para baixo o investimento, mas também vão chegar ao consumo. O Brasil, avalia Montero, está, pelo terceiro trimestre consecutivo, crescendo abaixo do seu potencial: pouco mais de 3,0% em termos anualizados. "E a qualidade do crescimento vai ser cada vez pior", adverte. Para o fim do ano, avalia, o gasto público vai aumentar e não há sinais de recuperação do investimento. A seguir, os principais trechos da entrevista. Valor: Olhando os indicadores atuais, é possível saber aonde a economia está? Fernando Montero: Para analisar a atividade devemos partir dos fatos. A produção estabilizou nos últimos seis meses e a balança comercial melhorou, em termos físicos. O volume de exportações líquidas melhorou. Abril tem sinais ambíguos, nem muito claros de crescimento, nem de queda. Enfim, não há nenhum sinal de mudança de tendência da indústria em abril. A produção estabilizou num patamar muito alto, mas estabilizou. Então, estamos exportando uma fatia maior de uma produção igual. E também há sinais, mais controversos, de que a economia teria estocado acima do desejado. De qualquer forma, os sinais são os seguintes: uma produção estabilizada de seis meses para cá, uma balança comercial maior em termos físicos e alguns sinais de aumento de estoque. Tudo isso significa que a fatia que foi para o mercado interno caiu. Valor: Por que essa queda não aparece nos indicadores de comércio nem de inflação? Montero: Tudo indica que a absorção interna está caindo mais nos investimentos do que nos bens de consumo. A gente vê isso olhando para a produção de bens de consumo. Entre o quarto trimestre do ano passado e o primeiro deste ano, em termos dessazonalizados, a produção de duráveis avançou 4,92% e a de não-duráveis e semiduráveis, 3,18%. Olhando para a pesquisa mensal de comércio, também se vê mais consumo. Cresce muito menos, 0,6%, mas esse dado vem depois de um dezembro muito bom. O pessoal do comércio e da indústria de consumo discute mais a possibilidade de crescimento menor no futuro. Valor: Mas os indicadores de confiança do consumidor também pioraram... Fernando: Só agora em maio a confiança do consumidor teve uma queda mais forte depois de crescer muito e cair em doses homeopáticas. Mas o que move o consumo é o nível de confiança. Até abril, o nível estava muito alto. E o crédito continua crescendo. Assim, temos confiança num nível alto, massa e emprego crescendo. Mas como nos dados agregados se vê uma desaceleração, força-se tudo o que é dado para ser encaixado num cenário de desaceleração Valor: Você vê reflexos desse consumo na inflação? Montero: Olhando para os índices de preços ao consumidor, seus núcleos, o acumulado em doze meses, os livres, os administrados, os tradables e os non tradables, se vê um quadro que não tranqüiliza. Temos uma desaceleração no atacado, mas isso vai chegar amortecido ao varejo. Não é nada muito sério. Valor: O que puxou a desaceleração do conjunto da indústria? Montero: O investimento, embora esteja sendo muito difícil estimá-lo com base nos indicadores de construção civil e do consumo aparente de máquinas e equipamentos. Além disso, os bens intermediários caíram 1,7% no primeiro trimestre em relação ao último de 2004 e eles são mais da metade da produção industrial. A queda dos bens de capital não chega a ser tão forte nesse período, pois parcela da produção foi exportada. Valor: Por que os intermediários estão caindo se a produção dos bens finais, que compra intermediários, não está em queda? Pode ser sinal de formação de estoques? Montero: É preciso olhar os dados com cautela e de forma desagregada. No aço, há diferença entre a Gerdau e a Belgo Mineira e a CSN. As duas primeiras fazem vergalhão para a construção civil e a CSN faz chapa de aço para automóveis. Ela está feliz e as duas chorando. Aço está crescendo em duráveis, mas despencando em construção civil. Valor: Então em algum momento os bons indicadores de consumo vão se refletir em alta de bens intermediários e de capital? Montero: Quando se olha para a demanda final, é muito tentador pensar que o Banco Central tem razão. Eles já tiveram razão com os dados de março, quando a indústria e o varejo mostraram recuperação boa. Como a demanda por bens de consumo vai bem e construção civil pode estar melhor do que os insumos estão mostrando, por que o Banco Central não tem razão? Mas há um outra hipótese para explicar a desaceleração. É a reversão do ciclo da renda agrícola. Tudo o que envolve a agricultura, seja investimento, sejam insumos, tratores, colheitadeiras, agrotóxicos, fertilizantes produzidos ou importados está despencando a taxas altíssimas. É um setor que está cortando compras e sobre o qual gravita toda uma economia, especialmente o interior. O BC não está vendo, mas acho que essa perda de consumo vai chegar aqui. Esse sinal é mais confuso. Na pesquisa mensal de comércio do IBGE, por regiões, a reversão fica clara. Valor: Como ela aparece?

O BC não está vendo, mas a perda de consumo do interior agrícola vai chegar ao resto da economia

Montero: O crescimento do varejo entre março do ano passado e março de 2005 foi de 6,26% para o conjunto do Brasil. No Rio Grande do Sul, houve queda de 0,70%, em Santa Catarina, alta de 1,3% e de 2,62% no Paraná. Os três Estados que pioram seu desempenho foram os do Sul. No acumulado do trimestre, a produção da indústria subiu 3,9%, enquanto a do Rio Grande do Sul cedeu 3,7%. A arrecadação de ICMS também arrefeceu. No primeiro trimestre, ela foi 17% maior em São Paulo e 23% em Minas Gerais, em dados nominais. No Rio Grande do Sul, o crescimento foi de 9,6%. Em Goiás, 9,3%. Valor: Para entender o que ocorre, então, é preciso dividir o Brasil em vários pedacinhos e setores? Montero: Exatamente. E o interior não está mais tão dinâmico. Mas o que depende de cana e café tem desempenhado positivamente, há um movimento heterogêneo. Há um ano, por exemplo, São Paulo estava crescendo dentro da média das regiões metropolitanas e o interior tinha acelerado muito mais. São Paulo passou a liderar o processo de criação de empregos formais, tanto na capital, quanto no interior, que não sofreu muito. Valor: Estaríamos subestimando então o efeito da perda de safra agrícola na economia? Montero: O interior não poupa em banco, a renda foi investida em terras, tratores, carros. De seis meses pra cá a festa acabou. Tenho a impressão de que nos últimos dois meses a situação da renda melhorou, mas o clima, que afeta a propensão a gastos, mudou muito. O interior não vai continuar a consumir picapes e DVDs. E se isso realmente estiver explicando a desaceleração mais forte de intermediários e máquinas agrícolas, isso tende a se alastrar. Temos, enfim, fundamentos que podem estar dizendo que a desaceleração veio muito mais pelo investimento do que pelo consumo. Podemos discutir porque desacelerou e como desacelerou, mas o fato é que a economia arrefeceu. Nossa expectativa é uma das mais otimistas para o PIB do primeiro trimestre: 0,7%. Isso significaria que a economia está crescendo abaixo de 3% em termos anualizados. E pelo terceiro trimestre consecutivo ela evoluiu abaixo do PIB potencial. Valor: E por que o BC insiste em subir os juros? O que a autoridade monetária está vendo? Montero: Olhando para trás é fácil entender a posição do BC. Com todas as agregações do IPCA pressionadas, o acumulado em 12 meses batendo 8%, uma meta apertadíssima, o BC pensou: quero sinais mais forte para ver essa queda. Mas isso é uma questão de tempo. O câmbio está finalmente aparecendo na inflação, como mostram os preços ao atacado. O BC não aumentou a taxa de juros por conta das expectativas do mercado. A inflação está vindo sistematicamente acima do esperado pelo mercado, que corrige as expectativas de curto prazo e com isso piora a previsão do IPCA para o ano. Valor: Além do IPCA e dos núcleos, o que mais pesou na decisão do BC? Montero: Só consigo ver isso: inflação corrente. Em fevereiro, parecia que o BC estava se antecipando a esse cenário com sinais de desaceleração. A única coisa que mudou do final de fevereiro para cá foram dois IPCAs ruins. Não consigo ver outra coisa. O PIB vai andar de lado pelo terceiro trimestre, o nível de atividade desacelerou. Valor: A queda do investimento está concentrada na agricultura? Há sinais de que a indústria esteja segurando investimento? Montero: Pelo que tenho ouvido, até agora ninguém suspendeu nada, mas quem pode adiar, adia. Faz todo sentido o adiamento. Um investimento precisa de preço e de perspectiva de crescimento. E se você olha para o mercado interno e vê essa taxa de juros que ninguém sabe para onde vai, vê o câmbio despencando e começa a questionar o crescimento no ano é natural que se adie investimentos. Mas isso me parece muito mais um risco para frente do que um dado observado até agora. Valor: A economia vai desacelerar mais? Montero: Ainda não temos isso muito claro. Por quê? Porque vamos ter o componente fiscal puxando a economia a partir de agora. É o pior drive. Temos um primário acumulado em 4,83%. O governo diz que vai para 4,1%, 4,2%, 4,3% do PIB. A receita está crescendo mais do que o PIB e os gastos vão crescer mais do que a receita, pois é isso que um primário menor significa. O gasto público seja direto ou por transferência, mais o crédito, significa consumo. Valor: É isso que segura a expectativa de 3,5% para o PIB de 2005? Montero: O fiscal vai ser expansionista, o crédito consignado ainda tem gás, porém, essa reversão do ciclo agrícola é muito forte e vai se alastrar. E não é só o efeito direto no PIB agrícola, que não vai perder tanto assim, pois outras culturas estão indo bem. São muito mais importantes os efeitos sobre confiança, crédito e consumo. Mas a economia não vai despencar porque há o driver fiscal e o crédito. O que significa que a qualidade do crescimento vai ser cada vez pior. É muito diferente ter uma economia que iria crescer 4%, com uma demanda doméstica que avançaria 5%, do que um PIB que sobe 3% com demanda interna 2,5% maior. Valor: Por onde vem a queda na expectativa do crescimento da demanda interna? Montero: Até agora, pelo investimento. Só que o consumo também vai desacelerar, mas muito menos do que se imaginaria, inclusive pelos efeitos defasados da política monetária, que serão menos intensos. Pode ter uma retração mais forte no interior, com um potencial de fazer um grande estrago no PIB. A menor compra de tratores, fertilizantes, colheitadeiras, vai afetar o resto do país, mas o efeito demora para chegar em São Paulo.