Título: Tensão deve continuar, prevêem argentinos
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2005, Especial, p. A12

As relações entre Brasil e Argentina devem continuar tensas pelo menos até o final de 2005. Em um ano eleitoral, o governo do presidente Néstor Kirchner tende a manter a estratégia de ficar ao lado dos setores em que há conflitos, ao mesmo tempo em que pressiona o sócio maior do Mercosul para que aceite a adoção de medidas que diminuam as desvantagens competitivas da indústria de seu país. Em outubro, a Argentina terá eleições em que se renovam parte do Senado e da Câmara, e o pleito é considerado crucial para que o presidente, que chegou ao poder com apenas 22% dos votos, consolide sua liderança. "Daqui até outubro deve ocorrer mais do mesmo. Qualquer coisa que tenha custos eleitorais, que tenha impacto sobre a geração de empregos, será postergada", disse o analista político Sergio Berenzstein, da Universidade Torcuato di Tella. Segundo ele, os ataques de Kirchner ao Brasil são resultado de uma estratégia que responde às reivindicações do empresariado e a necessidades políticas. "Foi uma postura clara do governo, na minha opinião articulada com a União Industrial (principal entidade empresarial do país), de apresentar uma posição dura e de confronto para forçar a negociação." Berenzstein acredita que, no futuro imediato, a relação entre os dois sócios do Mercosul será difícil "com idas e vindas e conflitos aproveitados politicamente, ao menos que haja algum choque". Uma trégua poderia vir de um eventual agravamento da crise energética argentina e a necessidade que o governo de Kirchner solicite ajuda ao Brasil. Outra é que os dois países tenham de unir-se para intervir na crise boliviana. Na prática, isso significa que, se não houver imprevistos, eventuais conflitos setoriais devem ser resolvidos como vem ocorrendo desde o ano passado: a Argentina impõe ou ameaça impor medidas unilaterais de restrição ao ingresso de produtos brasileiros e a ação gera um acordo entre os setores privados dos dois países, limitando as exportações à Argentina. O Brasil acumula 23 meses de superávit comercial com a Argentina, e o fato que mais assusta o governo e o empresariado local é que o desempenho positivo do Brasil ocorre apesar de uma situação cambial favorável ao seu país, e quando a maior economia do Mercosul está em crescimento. A expansão da economia brasileira deveria provocar o aumento da demanda por produtos argentinos, mas aparentemente isso está ocorrendo em grau muito mais modesto que em ciclos anteriores. Entre 1999 e 2000, o PIB brasileiro teve crescimento de 12,23% em dólares, e no mesmo período as vendas argentinas ao Brasil cresceram 22,8%. Mas de 2003 a 2004 o crescimento brasileiro impulsionou menos as exportações argentinas, e tanto o PIB em dólares quanto as vendas argentinas tiveram expansão de 19%. Esses dados geram ruídos políticos no país vizinho, que vê o avanço brasileiro como uma investida para que a Argentina se conforme com o papel de provedor de produtos com baixo valor agregado. Essa visão ficou clara em declarações do próprio presidente Kirchner, que há dez dias afirmou que o "Brasil, sobretudo o establishment de São Paulo, quer ter uma grande indústria (...) e que toda a América Latina fique sem indústrias". "A balança tende a ser estruturalmente superavitária para o Brasil", avalia o ex-secretário de Comércio Exterior Raul Ochoa. A explicação para isso, segundo ele, é que nos últimos anos a oferta exportadora argentina permaneceu praticamente a mesma, enquanto o Brasil diversificou os produtos que vende e substituiu artigos que trazia do vizinho com produção interna ou outros fornecedores. Essa "troca" brasileira acentuou o caráter primário das exportações argentinas. Esse processo foi reforçado, ainda, com a a redução dos investimentos das montadoras na Argentina. A produção de automóveis no país ficou "envelhecida" e menos atraente para o consumidor brasileiro. Ao mesmo tempo, a Argentina passou a comprar do Brasil, a preços inferiores, produtos que antes ela adquiria de países europeus e dos Estados Unidos. "Esse exemplo vale para celulares, maquinário industrial, máquinas agrícolas, insumos químicos e petroquímicos", disse Ochoa. Em 1998, ano em que o intercâmbio comercial entre os dois países foi recorde, a Argentina vendeu US$ 4,44 bilhões em manufaturas de origem industrial ao Brasil, e comprou US$ 6,28 bilhões na mesma categoria, de produtos com maior valor agregado, ficando com déficit de US$ 1,84 bilhão. No ano passado, as vendas brasileiras desses bens chegaram a US$ 6,83 bilhões (mais que em 1998), mas do lado argentino o total caiu para US$ 2,92 bilhões, elevando o déficit para US$ 3,9 bilhões. Na visão do ex-secretário, as medidas de restrição ao comércio aplicadas até agora pela Argentina não solucionarão esses problemas, e seria melhor se o Brasil aceitasse discutir uma política de complementação econômica com o vizinho.