Título: As restrições à (boa) idéia do orçamento impositivo
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 25/05/2005, Opinião, p. A11

Mais de um economista tem ressaltado no Brasil, no debate sobre política fiscal, que a institucionalidade do país acerca do tema orçamentário é algo "sui generis", por combinar um regime onde o Poder Legislativo tem plenos poderes para aprovar medidas fiscais que podem ferir os objetivos da política econômica, com uma legislação que, na prática, dá espaço para que o Poder Executivo simplesmente ignore as decisões que emanam do Parlamento, no que diz respeito à alocação do gasto público. Para qualquer pessoa que preze os ritos da democracia, não deixa de ser irritante que o Executivo se atribua o direito de, na prática, desprezar olimpicamente aquilo que é decidido pelo Congresso Nacional. Mais irritante ainda isso tem que ser, obviamente, para os próprios parlamentares, que ficam discutindo entre setembro e dezembro detalhes de um orçamento que, no mundo real, as autoridades da área econômica, no começo do ano seguinte, muitas vezes decidem que não serve para nada. Isto porque, se o Congresso define em dezembro que o governo vai gastar no ano seguinte, por exemplo, 100, nada impede, legalmente, que no começo do ano o governo assine um decreto informando ao público que ele vai gastar apenas 80. A razão de ser disso é que, por uma estranha interpretação dada à lei, no Brasil o orçamento tem caráter apenas autorizativo. Isso significa que o Executivo não tem poderes para gastar acima do que foi orçado, mas não está obrigado a gastar a totalidade dos recursos previstos no Orçamento. Essa situação tem levado muitos parlamentares, com certa intensidade, a defenderem a proposta do chamado "orçamento impositivo", para obrigar o governo a gastar aquilo que tiver sido decidido pelos parlamentares, que, afinal de contas, têm sua legitimidade derivada do fato de terem sido eleitos pela população. A proposta, em tese, é corretíssima e, em um Brasil que progressivamente vá amadurecendo institucionalmente, é nessa direção que temos que avançar. Contudo, é necessário também entender o outro lado da moeda: a área econômica de qualquer governo acaba editando o decreto de reprogramação financeira, revendo os limites de gasto definidos previamente no orçamento, porque muitas vezes o Congresso aprova despesas que, se implementadas, simplesmente dinamitariam a estabilidade de preços. A razão é fácil de entender: trata-se de gastos financiados pelo que no jargão fiscal informal se denomina de "receita de vento", ou seja, receitas superestimadas, que não deverão ser observadas na prática. Isto posto, ou os Ministros da Fazenda e Planejamento adotam essa atitude ou, com receitas inferiores às orçadas, acabariam sancionando um "rombo" fiscal muito maior que o que consta do orçamento.

Nova lei, com as amarras existentes hoje, tolheria um dos poucos espaços de manobra do Executivo para evitar o descontrole fiscal

É possível, portanto, caminhar na direção do orçamento impositivo, desde que se levem em conta os seguintes condicionantes: 1) a receita incluída no orçamento deveria ser estimada por uma comissão independente, de alguma forma inspirada no Congressional Budget Office (CBO) dos EUA, com um quadro de carreira próprio, especializado e cujos números fossem aceitos tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, evitando-se a aprovação de receitas baseadas em premissas irrealistas; 2) como o mercado entende que a institucionalidade atual é o instrumento que permite ao Executivo ter condições de cumprir as metas fiscais, uma medida do gênero deveria ser adotada quando não houvesse riscos caso o governo não "entregasse" o superávit prometido, o que significa que o início da vigência plena de uma medida do gênero deveria ser adiado até que a dívida pública diminua para, por exemplo, 40 % a 45 % do PIB; 3) a proposta deveria ser acompanhada por uma emenda constitucional de desvinculação geral das despesas, ampliando a liberdade alocativa do gasto. Aprovar o orçamento impositivo, ao mesmo tempo em que se conservam todas as amarras hoje existentes, pode ser uma rota para o suicídio, por tolher um dos poucos espaços de manobra do Executivo para evitar o descontrole fiscal; 4) o caráter impositivo do orçamento deveria se aplicar especificamente às "outras despesas de custeio e capital" (OCC) que excluem transferências constitucionais, gastos com pessoal e INSS e teria que ser gradual, começando, por exemplo, com 40% a 50 % de obrigatoriedade do dispêndio e aumentando o percentual ano a ano, ao longo de quatro a cinco anos; e 5) mesmo no final do processo, é recomendável que o percentual de despesas obrigatórias em relação ao valor que consta do orçamento seja inferior a 100%, ficando limitado a, por exemplo, 80% do OCC. A razão para isso é que o Executivo deve ficar com certa capacidade de reação diante de imprevistos. Suponha-se que no meio do ano haja uma mudança macroeconômica que obrigue a um ajuste fiscal imediato. Se toda a despesa orçada estiver comprometida, o país ficaria a mercê da crise, sem capacidade de a política fiscal reagir e dependendo apenas das políticas monetária e/ou cambial. Por isso, o governo deve dispor de algum instrumento de reação diante de um cenário desse tipo. Esses 20% adicionais em relação ao limite mínimo poderiam ser gastos ou não, dependendo das circunstâncias. Se um conjunto de providências dessa natureza for adotado, o Brasil estaria caminhando na direção de um maior amadurecimento institucional, e de uma redemocratização das decisões alocativas do gasto público, sem que isso coloque em risco a estabilidade que tanto nos custou. Em função dos argumentos acima expostos, um programa de trabalho que poderia ser adotado envolveria debater o assunto em 2005/2006; votar a nova legislação em 2007, contemplando um período de ajustes graduais; e estabelecer a plena vigência do novo mecanismo, por exemplo, a partir de 2011. Assim, o próximo governo implementaria uma transição suave ao longo de quatro anos e nele se votaria, ainda em 2010, o primeiro orçamento impositivo, para vigorar plenamente a partir do ano seguinte.