Título: Voar, voa, mas é galinha
Autor: Joaquim Elói Cirne de Toledo
Fonte: Valor Econômico, 25/05/2005, Opinião, p. A10

Muito estardalhaço fazem as galinhas quando voam, mas, como galinhas que são, voam a pouca altura, por pouca distância e por pouco tempo. Muito estardalhaço se tem feito com o crescimento da economia brasileira em 2004. Infelizmente, porém, o crescimento acelerado ainda parece ser, aqui, tão sustentável quanto o vôo das galinhas. Antes de expor os fatos e as conjecturas que suportam essa avaliação, é preciso apontar o cerne da restrição ao crescimento acelerado: o baixo nível histórico de investimentos na economia brasileira, inclusive em "capital humano" no sentido amplo, incluindo não apenas educação formal, mas conhecimento técnico e organizacional, saneamento, habitação e saúde. Os investimentos que não fizemos no passado (distante ou próximo) parecem impor uma triste e pesada obrigação ao governo: refrear periodicamente o crescimento do nível de atividade econômica. O que se teme, é claro, não é a manutenção da inflação em um patamar estável, ainda que um pouco superior às taxas internacionais; o problema seria a aceleração inflacionária, como tão duramente aprendemos todos os brasileiros. Sendo ausentes, ou insuficientes, outras políticas e instrumentos, seja qual for a razão, restaria ao Banco Central a tarefa de combater a aceleração inflacionária que teme e, ao fazê-lo via juros altos, perpetua o dilema, pois prejudica os investimentos e, logo, impõe ao futuro o baixo e sinuoso crescimento presente. A percepção de que a economia brasileira está desacelerando já há algum tempo está lentamente se generalizando. Muitos ainda descrêem da desaceleração; outros muitos se surpreendem com ela. Não há razão para surpresa - afinal, o fenômeno era facilmente previsível. Assim, como mero exemplo, cito a entrevista que dei à "Folha de S.Paulo", em 22/07/2004, ou seja, há dez meses, quando apontei: "Os investimentos aumentam quando a taxa de juro real cai (...) O último período de queda dos juros foi o primeiro trimestre [de 2004]. Assim, até o terceiro trimestre haverá investimentos, mas no quarto trimestre [de 2004] o investimento vai cair". Vamos então aos fatos e às conjecturas sobre o desempenho recente da economia brasileira. Primeiro fato: o crescimento do nível de atividade começou a desacelerar ainda no terceiro trimestre de 2004. O nível de atividade cresceu a taxas superiores a 7% ao ano no quarto trimestre de 2003 e no primeiro trimestre de 2004 (comparando-se o nível em cada trimestre com o do trimestre anterior). O ritmo de crescimento caiu para 6% ao ano no segundo trimestre de 2004, para 4,4% ao ano no terceiro e, finalmente, pífios 1,7% ao ano no último trimestre. Outros indicadores, como a produção industrial, mostram as mesmas tendências. Primeira conjectura: as taxas trimestrais (anualizadas) de crescimento são um indicador antecedente da taxa anual (acumulada) de crescimento, três trimestres à frente. Assim, ao invés do crescimento de 5,2% acumulado em 12 meses, como em 2004, poderemos - conjectura-se - observar uma taxa de crescimento substancialmente abaixo de 3% ao ano, nos 12 meses terminados no terceiro trimestre de 2005.

Baixo nível histórico de investimentos na economia brasileira é o cerne da restrição ao crescimento acelerado

Segundo fato: a produção industrial não mostrou apenas uma desaceleração, mas uma queda, no último trimestre de 2004. Segunda conjectura: o comportamento da atividade industrial tem como um determinante fundamental o comportamento do investimento (no sentido restrito, ou seja, Formação Bruta de Capital Fixo - FBKF). Quando o investimento sobe, sobe a atividade industrial; quando cai a FBKF, a indústria como um todo cai. A causalidade é a de livro-texto: investimento é demanda, e a demanda determina o nível de renda. É a lógica do "multiplicador", não parece ser a do "acelerador" (o nível de atividade determinaria o investimento). Basta ver o que ocorreu no terceiro trimestre de 2003 e no quarto trimestre de 2004: no primeiro caso, o investimento cresceu quando a indústria estava no "fundo do poço"; no último, o investimento caiu, apesar do "pico" de produção industrial. Terceiro fato: a taxa real de juros de curto prazo (doze meses), medida pela relação entre a taxa nominal de juros (swap) e a expectativa de inflação (no Focus, do Bacen), apresentou tendência de queda apenas até o início de 2004 - de máximos da ordem de 24% ao ano, no pânico do terceiro trimestre de 2002, para um mínimo de 8,5% ao ano, em janeiro de 2004. Os juros subiram antes do Banco Central iniciar o aumento da taxa-meta Selic, em setembro último. Terceira conjectura: a taxa real de juros de um ano afeta significativamente o investimento (FBKF), com uma defasagem de dois a três trimestres. Os altos juros nos terceiro e quarto trimestres de 2002 determinaram a queda pronunciada dos investimentos até o segundo trimestre de 2003; a queda dos juros no primeiro trimestre de 2003 explica a retomada dos investimentos no terceiro trimestre de 2003; o fundo do vale dos juros (média de 9,1% ao ano) no primeiro trimestre de 2004 determinou o pico de investimento no terceiro trimestre de 2004; finalmente, o aumento dos juros no segundo trimestre do ano passado - de 9,1% ao ano para 10,6% ao ano - levou à queda dos investimentos no último trimestre de 2004. Quarto fato: os juros reais mantiveram a tendência de aumento observada no segundo trimestre de 2004 também nos trimestres seguintes, até hoje. A taxa média saiu de 10,6% ao ano, no segundo trimestre de 2004, para o nível atual de cerca de 13% ao ano. Os aumentos ocorreram antes das decisões do Copom para a taxa-meta Selic, de setembro em diante; com as decisões do Copom, o aumento se intensificou. Quarta conjectura: os investimentos (FBKF) não devem ter aumentado no primeiro trimestre deste ano e apresentarão tendência de queda ao longo dos próximos trimestres - pelo menos, até o terceiro trimestre, inclusive. A economia estará respondendo ao passado, ou seja, aos aumentos de juros observados no último trimestre do ano passado e no primeiro trimestre deste ano. A atividade industrial seguirá o comportamento do investimento, bem como o nível global de atividade (o PIB), supõe-se. Os fatos e as conjecturas aqui expostos levam a uma conjectura final: não apenas foi "vôo de galinha" o crescimento de 2004; o desempenho da economia brasileira em 2005, e no futuro próximo, será tão sustentável, elevado e elegante como as espalhafatosas tentativas de vôo dos galináceos.