Título: Opção preferencial pelos 300 picaretas
Autor: Raymundo Costa
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, Política, p. A8

Há certa apreensão no Congresso sobre a relação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a democracia representativa. O PFL identifica nas ações de Lula um "chavismo" embrionário mal-disfarçado que se manifestaria plenamente em eventual segundo mandato. O presidente do Senado, Renan Calheiros, não esconde o temor de que Lula procure na interlocução direta com a sociedade o caminho para superar a atual crise política. A discussão chegou ao interior do PT. Ex-líder do PT e atual primeiro-vice-presidente do Senado, Tião Viana (AC) assegura que não há como duvidar da formação democrática de Lula, mas se diz convencido também de que um "certo desprezo" do presidente em relação ao Legislativo é uma das causas da crise que ameaça a estabilidade do governo. "Lula, sem dúvida alguma, teve dificuldades para se adaptar a essa relação", diz o senador acreano. Tião Viana identifica um defeito de origem na composição da coalizão governista, em razão dessa dificuldade: a opção preferencial pelo fisiologismo. "O Congresso não é uma casa de pedintes", argumenta o senador. "O presidente deveria ter se aproximado pelo bom caminho, não pelos defeitos, mas pelas virtudes dos partidos". E arremata: "Não sabendo conviver, (Lula) menosprezou os bons aliados que poderia ter arregimentado e começou a perder votações". O problema, para Tião Viana, é que Lula tem dificuldades "para estabelecer uma plataforma de convivência com o Congresso onde valores republicanos, éticos e as teses legislativas sejam tocados pelo interesse da sociedade brasileira". Em vez disso, prevalece a cooptação fisiológica dos partidos. "Esse é o pior caminho. Não é a nossa história, a nossa trajetória". Um dos erros teria sido o esforço direcionado ao PMDB pelo governo, quando, por algum tempo, setores do PSDB, mais identificados com o PT, acenaram com a possibilidade de um entendimento, não para as eleições de 2006, mas para as seguintes, como fez o governador de Minas Gerais, Aécio Neves. Um entendimento teria ajudado na governabilidade. O senador não diz, mas cabe a explicação: quem dinamitou as pontes de tal entendimento foi o ministro José Dirceu, ao atacar lá atrás o senador Tasso Jereissati (CE) demarcar uma linha de divisória entre tucanos e petistas. Primeiro líder do PT no Senado, no governo Lula, Tião Viana lamenta que o partido esteja errando naquilo que sabia fazer melhor, a política. "É um desastre, uma tragédia. E não adianta ficar nesse jogo de caça às bruxas, a culpa é deste ou daquele ministro, a culpa é do Aldo Rabelo (ministro da Coordenação Política), a culpa é deste ou daquele líder da base aliada. A responsabilidade da política é do presidente da República". Tião Viana circula pelo campo majoritário do PT, é leal a Lula, mas está convencido de que "esse projeto de convivência" é o "único fator de risco" para a reeleição do presidente. "Desgasta a imagem dele. A gestão vai bem, a macroeconomia vai bem, projetos começam a apresentar resultados. O risco é a política. E a culpa é do presidente da República, que pode determinar o que tem de ser feito", diz, com veemência.

"Congresso não é casa de pedintes", diz petista

É a hora, diz o primeiro-vice-presidente do Senado, de o presidente "transpor essa linha imaginária e entrar na seara partidária" com uma agenda republicana, ética e projetos legislativos a serem votados. "Ele encontraria aceitação dos partidos nisso". A partir daí, seria possível construir uma base de sustentação com cerca de 200 deputados e 33 senadores, "aliados de fato", para levar o governo até a reeleição. De certa forma, é o que também tem pregado o presidente do PT, José Genoino (SP), ao falar em "requalificar" a coalizão governamental. Tião Viana, no entanto, não parece otimista. Para o senador, "o excesso de confiança" de Lula em sua própria gestão põe como secundária a importância estratégica do parlamento para a governabilidade". No Palácio do Planalto, vira e mexe argumenta-se que Juscelino Kubitschek também mantinha um certo distanciamento em relação ao Congresso. "JK tinha esses momentos, mas todos os dias dialogava e fortalecia uma relação política com os partidos. Esse é o nosso erro. Se fizermos política com uma base de 200 deputados e 33 senadores, a gente enfrenta tudo. Mas o governo fica com essa coisa amorfa, trata com certo desprezo o parlamento". Não é de estranhar. O desapreço de Lula pelo Congresso já se manifestou em mais de uma ocasião. Ele mal conseguiu suportar um mandato na Câmara. Desistiu da reeleição. É dele, como se recorda, a frase sobre a existência de "300 picaretas" no Congresso - pelos quais, ao final, parece ter optado ao chegar ao governo. Azarão brizolista O professor de direito da Universidade de Harvard Roberto Mangabeira Unger, 58, chegou domingo ao Rio e participa hoje, em Brasília, das comemorações dos 25 anos do PDT. Mangabeira Unger é candidato à indicação da sigla para a Presidência da República. Para quem duvida das possibilidades de um filósofo com forte sotaque americano nas eleições, ele tem uma resposta afiada na ponta da língua: "Eu falo com sotaque, mas, ao contrário das pessoas que governam o país, eu não penso com sotaque". Recorrendo a uma das expressões recorrente de Leonel Brizola, o filósofo diz que o povo está "costeando o alambrado" e não tem "aversão ao risco". Pelo contrário, poderia até ser acusado de excesso, "mas não de falta de audácia". O que Mangabeira julga precisar para se apresentar como "mensageiro de uma nova mensagem" é "furar o bloqueio do desconhecimento". Quando isso ocorre, acredita, "tudo pode acontecer". Mangabeira se apresenta ao PDT como uma "alternativa clara a essa linha a qual PT e PSDB convergiram", uma esquerda que teria se revelado "falsa e amestrada". Tanto a coalizão formada pelo PSDB quanto a que o PT hoje comanda, do ponto de vista do pré-candidato pedetista, "se supõem representantes da modernidade", quando, na realidade, "as duas são protótipos do atraso e tentam desesperadamente fingir que há diferenças entre elas. Não há. O que existe é o apetite de poder".