Título: O Brasil decide se defender das importações chinesas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, Opinião, p. A10

O governo brasileiro decidiu, depois de muita hesitação, criar instrumentos de defesa comercial contra o ingresso de produtos chineses que provoquem dano às indústrias nacionais. Há cerca de um mês, a posição oficial era a de que não havia sinais evidentes de que as importações chinesas estivessem fora do padrão previsível. Diante das reclamações de setores industriais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que eventuais problemas nas relações comerciais entre os dois países poderiam ser resolvidos com negociações diretas. Por motivos não muito claros, o governo mudou de rota, seguindo os exemplos dos Estados Unidos, da União Européia e Argentina - que, diferentemente do Brasil, não reconhecem o status de economia de mercado à China. Fechados os números da balança comercial no primeiro quadrimestre do ano, o avanço das importações chinesas tornou-se evidente. As vendas brasileiras para a China avançaram apenas 3,8%, enquanto que as importações daquele país subiram 58%. Os números agregados, que indicam uma participação chinesa acima do crescimento médio das compras externas, não contam toda a história. As importações de vestuário deram um salto - mais 70,4% - , as de equipamento de vídeo aumentaram 267,7% e as de máquinas e equipamentos, 69,9%. Desde meados de 2004, a Fiesp já apontava indícios de dumping por parte dos fabricantes chineses em 17 setores, entre eles máquinas e equipamentos, autopeças, material elétrico e laminados de aço. Com o fim do acordo têxtil, que eliminou o vasto sistema global de cotas, era esperado que o poderio chinês, livre de amarras, mostrasse toda a sua força. Aparentemente, o impacto das exportações chinesas foi superior ao previsto pela indústria têxtil nacional, que mantêm em vários segmentos forte poder de competição internacional. As reclamações contra a China combinam queixas contra a entrada de produtos pelos canais normais ou via contrabando. Em alguns casos, ora o produto chinês tem preço simbólico muito baixo, ora a quantidade de mercadorias baratas é superior até mesmo à demanda total do mercado, ora as duas coisas juntas. De maneira geral, porém, os estragos causados pelas exportações chinesas não se restringem aos têxteis. E boa parte do salto chinês se deve ao fato de que o país não é uma "economia de mercado" - ao contrário do que reconheceu o governo brasileiro. Os subsídios são uma prática cotidiana da economia chinesa. Aceita na Organização Mundial do Comércio, a China se submeteu a um status de transição por 15 anos, até 2016, até que se adaptasse ao livre jogo de mercado. Aceitou com isso que os países membros da OMC levantassem salvaguardas até 2008 no caso de produtos têxteis e até 2016, no caso dos demais produtos. Serão esses prazos que nortearão as ações brasileiras segundo o novo dispositivo de regulamentação das salvaguardas. Caberá aos órgãos de defesa comercial separar o joio do trigo - discernir entre o velho instinto protecionista de parte da indústria brasileira, que não têm condições de competição mesmo em condições normais, e as práticas claramente desleais de comércio. Diante da ofensiva dos EUA, que limitou o acesso a seu mercado de alguns produtos têxteis chineses e da UE, que abriu investigação contra quase uma dezena deles, o governo chinês elevou na sexta-feira suas tarifas de exportação de todas as mercadorias que estão sendo alvo de retaliação nos países desenvolvidos. Com isso, as autoridades chinesas definiram o caminho que pretendem seguir diante de ameaças protecionistas. Elas descartaram a possibilidade de limitação voluntária das exportações - uma opção na qual o governo brasileiro parecia apostar antes de se decidir pelas salvaguardas. Parecem inexoráveis o avanço da produtividade chinesa e a sofisticação crescente de seu parque industrial, rumo a bens de alta tecnologia. A China certamente ganhará fatias adicionais de mercados em todo o mundo e isso faz parte do jogo, se forem seguidas regras equilibradas e válidas para todos. Mas o sistema de preços chinês é uma caixa-preta. Nele influem com força os bancos estatais, que concedem crédito a juros negativos e acumulam vasto volume de débitos irrecuperáveis. Em nome do livre mercado, é quase impossível não aceitar a força competitiva da China, para a qual ela se prepara há duas décadas. Pelo mesmo princípio, é pueril não usar as armas da defesa comercial contra vários dos artifícios com que a China mune seus exportadores e que dão a eles um poder de concorrência desigual.