Título: Democracia no Oriente Médio
Autor: Saad Eddin Ibrahim
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, Opinião, p. A11

Os resultados das eleições em todo o Oriente Médio marcam uma nova tendência: os partidos políticos islâmicos - que baseiam as suas plataformas na lei islâmica - são extremamente populares. Nos lugares em que eleições foram realizadas, os islâmicos se saíram bem: o Hamas, entre os palestinos na Cisjordânia e Gaza; a coalizão de orientação religiosa xiita no Iraque; uma facção parlamentar no Marrocos e, de forma mais significativa, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) no poder na Turquia. Movimentos de democracia no Líbano, Egito e em outros lugares na região precisam enfrentar o desafio de incorporar os partidos islâmicos nos sistemas democráticos. Mas pode-se confiar nos islâmicos? Se ascenderem ao poder, respeitarão os direitos das minorias e das mulheres e deixarão os seus cargos quando forem retirados pelo voto? Tolerarão divergências? Ou será que essas eleições serão baseadas no lema "um homem, um voto, uma vez?" Na condição de sociólogo, tenho estudado esses temas por 30 anos. Quando estava recluso em uma prisão egípcia, discuti esses temas com meus colegas presos, muitos dos quais encarcerados por apoiarem o movimento islâmico do Egito. Minha conclusão? Os partidos islâmicos estão mudando. Esses partidos entendem as transformações sociais em curso no Oriente Médio, que rumam na direção da democracia, e eles querem tomar parte. Na minha opinião, podemos estar testemunhando o surgimento de partidos democráticos muçulmanos, de forma muito semelhante à ascensão dos partidos democratas cristãos na Europa nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial. A popularidade dos islâmicos não é difícil de entender. Levando-se em consideração que os regimes autocráticos no Oriente Médio não deixaram muito espaço para a livre expressão, a mesquita despontou como o único lugar em que as pessoas podiam congregar livremente. Os grupos religiosos reagiram a essa oportunidade, aparecendo primeiramente como agências de bem estar social e, depois, se transformando no equivalente a partidos políticos locais. Nesse processo, eles conquistaram credibilidade como defensores dignos de confiança do povo - uma distinção real na comparação com governos repressivos e corruptos. Em princípio, seria hipócrita defender a democracia e, ao mesmo tempo, a exclusão dos islâmicos da participação política pacífica. A prática da política eleitoral, porém, também nos confere motivos para otimismo. Pelo meu cálculo, cerca de dois terços dos 1,4 bilhão de muçulmanos no mundo vivem atualmente sob governos eleitos nos quais os partidos islâmicos são participantes. Quando os partidos islâmicos têm negado o seu acesso à política eleitoral, sua causa assume uma aura mítica. Seus princípios se mantêm como ideais não testados, que jamais são obrigados a confrontar as realidades práticas da governança. O falecido rei Hussein assumiu esse desafio em 1989, depois da eclosão dos "protestos do pão" na cidade de Ma´an, no sul da Jordânia. O rei reuniu todas as forças políticas para redigir uma carta nacional pela participação política. Os islâmicos subscreveram, prometendo seu respeito pelas regras do jogo.

Cruzada americana alterou a dinâmica da região e abriu espaço a movimentos que desafiam seus opressores em nome da liberdade

Nesses anos que se passaram, os islâmicos tiveram participação em quatro eleições jordanianas. Na primeira vez, eles conquistaram uma pluralidade governante, colocaram seus lemas em prática e não conseguiram manter o apoio popular. Nos quatro ministérios administrados pelos islamitas, eles impuseram restrições sobre as funcionárias públicas, desencadeando protestos generalizados que por fim levaram à renúncia dos quatro ministros. Sua parcela dos votos nas eleições subseqüentes caiu acentuadamente. Por outro lado, é um erro acreditar que a força pode eliminar os movimentos islâmicos. Em vez disso, a reforma política deve incluí-los sob as seguintes condições: 1) respeito à constituição nacional, à observância das leis, e à independência do Judiciário; 2) aceitação da alternância do poder, com base em eleições livres, justas e internacionalmente monitoradas; 3) direitos iguais garantidos e plena participação de minorias não-muçulmanas; 4) plena e total participação das mulheres na vida pública. O papel dos atores externos na promoção da democracia no Oriente Médio também é crucial. Muito já foi dito a respeito da "cruzada" liderada pela América do presidente George W. Bush, de levar democracia ao mundo muçulmano. As guerras no Afeganistão e no Iraque foram atribuídas, pelo menos em parte, à disseminação da liberdade; similarmente, a iniciativa da parceria no Oriente Médio deverá transformar a democracia na peça central da ajuda americana na região. É importante lembrar, contudo, que a democracia estava na agenda internacional antes de os Estados Unidos terem sido atacados, em setembro de 2001. Com base no Acordo de Barcelona de 1995, a União Européia ofereceu ajuda e comércio a vários países árabes, em troca de progresso nas reformas democráticas. As melhoras no comércio foram implementadas, porém pouco se conseguiu em torno da reforma interna árabe. Na década de 1970, o Acordo de Helsinque ajudou a derrubar o império soviético. Precisamos de uma fórmula semelhante para o Oriente Médio. Independente do que pensemos sobre a intervenção militar americana, é preciso reconhecer que ela alterou a dinâmica da região. As forças de oposição internas, embora tenham se distanciado dos EUA, foram notadamente estimuladas no Líbano, Egito, Arábia Saudita e demais lugares. Todos estamos monitorando os indícios de abertura entre os nossos vizinhos. Eu sei que as vibrações da democracia já foram esmagadas antes: em Budapeste em 1956, em Praga em 1968 e na Praça Tiananmen em 1989. Algo em torno dos meses recentes, porém, produz uma sensação nova e irreversível. Um número grande demais de pessoas em uma quantidade muito grande de lugares está desafiando os seus opressores e assumindo riscos em prol da liberdade. Para um militante de longa data, o clima atual passa a impressão de primavera.