Título: Crise leva GM a "queimar" reserva de caixa
Autor: BusinessWeek
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, Empresas &, p. B6

Considerada um ícone americano, montadora vende US$ 193 bi e gasta US$ 8,7 bi em salários por ano

Se a General Motors (GM) fosse outra companhia, seus problemas teriam se resolvido há muito tempo. A lógica diz que quando as posições de caixa excedem o valor no mercado de ações, algum tubarão de Wall Street ataca, arranca as partes boas e joga fora o resto. Companhias com fábricas e forças de trabalho inchadas se converteram da maneira mais dura há 20 anos. E hoje com os conselhos mais ativos, os executivos que perdem terreno para a concorrência não precisam que Donald Trump lhes digam que estão demitidos. Mas a GM não é uma companhia comum. Com vendas de US$ 193 bilhões, ela é um ícone do desvanecente poderio industrial americano. Tamanho e simbolismo significam que seu destino tem implicações radicais. A folha de pagamento da GM injeta US$ 8,7 bilhões por ano nos bolsos dos funcionários. Direta ou indiretamente ela é responsável por 900 mil empregos. Quando a GM fechou por 54 dias em 1998, por causa de uma greve, eliminou um ponto percentual do crescimento da economia americana no trimestre em que ficou parada. Portanto, o que é ruim para a General Motors, é ruim para os Estados Unidos. E ela está numa situação difícil. O prejuízo de US$ 1,1 bilhão do primeiro trimestre não conta toda a história. A montadora está sobrecarregada por um custo de US$ 1,6 mil por veículo relativo aos chamados custos herdados, principalmente despesa com plano de pensão e benefícios previdenciários. A GM perdeu surpreendentes 74% de seu valor de mercado - cerca de US$ 43 bilhões - desde o segundo trimestre de 2000, o que lhe dá hoje um valor de US$ 15 bilhões. A situação ficou ainda pior depois do rebaixamento da classificação de risco de seus bônus O que realmente assusta os investidores é que a GM continua perdendo terreno em sua atividade principal, que é vender automóveis. Investimentos insuficientes colocaram a companhia na posição de agora estar lutando para alcançar os níveis de desenvolvimento tecnológico e design conseguidos por outros concorrentes. As vendas da GM caíram 5% no mercado doméstico no trimestre passado, com a Toyota, Nissan e outros concorrentes se aproveitando disso. No mês passado, o principal executivo da companhia, G. Richard "Rick" Wagoner e sua equipe desistiram até mesmo de tentar adivinhar como eles estarão financeiramente no fim deste ano. E o que é pior de tudo: a GM alcançou um divisor de águas em suas quatro décadas de queda na participação de mercado. Após perder dois pontos percentuais de participação ao longo do último ano, para 25,6%, a GM atingiu o ponto em que ela na verdade consome mais caixa do que gera na fabricação, pela primeira vez desde o começo dos anos 90. A GM está hoje com um fluxo de caixa negativo. Isso é algo que muda o jogo. Sem crescimento, a estratégia de manter as fábricas funcionando até que seus custos herdados comecem a cair não é mais um argumento que possa ser defendido. Se a participação de mercado continuar caindo, seus prejuízos rapidamente vão disparar. Normalmente, uma companhia numa situação dessas se contrai até que encontre um ponto de equilíbrio. Mas para a GM, encolher não é uma opção. Por causa dos acordos que ela tem firmados com sindicatos trabalhistas, a montadora não pode fechar fábricas ou demitir funcionários sem o pagamento de multas pesadas. Ela precisa fazer suas fábricas funcionarem com no mínimo 80% de suas capacidades de produção, estejam elas fazendo dinheiro ou não. Mesmo que suspenda linhas de produção, a GM precisa pagar os funcionários demitidos e bancar custos previdenciários e de cuidados com a saúde. O plano até agora vem sendo deixar o relógio correr até que as planilhas atuariais se inclinem a favor da GM (uma maneira branda de dizer que em algum momento os aposentados mais velhos vão morrer). Mas com as vendas em queda, esse plano pode ter o efeito oposto - deixando a GM à mercê de uma série de possibilidades pouco animadoras. Até onde a coisa pode piorar? A análise da "BusinessWeek" é que em cinco anos a GM precisa ser uma companhia bem menor, com menos marcas, menos modelos e custos herdados reduzidos. É inegável que chegar a esse ponto vai exigir um rumo diferente do que o seu presidente Wagoner vem seguindo até agora. Ele terá de forçar uma reestruturação radical aos trabalhadores e ao resto do entrincheirado sistema GM, ou verá isso ser imposto a ele por gente de fora ou uma corte de falências. A única dúvida é se esse ajuste virá no ano que vem, se os modelos desenvolvidos pelo vice-presidente do conselho de administração Robert A. Lutz não decolarem; em 2007, quando a GM for renegociar seus contratos com os sindicatos; ou talvez em cinco anos, quando tiver queimado sua substancial reserva de caixa. Por que é tão difícil para as pessoas de dentro da GM enxergarem o inevitável? A idéia de ser a número 1 está inserida no DNA da companhia - o que torna impossível para os executivos abraçar uma estratégia de encolhimento. E os líderes sindicais nunca viram um problema que não pudesse ser resolvido na mesa de negociações. Wagoner não quis dar entrevista, mas o porta-voz, Tom Kowaleski, diz que a companhia está confiante de que conseguirá reconquistar sua força. Ele afirma que Wagoner tem o apoio do conselho e, mesmo que seu plano falhe, a GM está preparada.

A GM fechou por 54 dias em 98, reduzindo em um ponto percentual o crescimento da economia americana

No entanto, cada vez mais as soluções escaparão do controle da GM. Em algum momento as leis da física vão tomar o comando e, assim como as siderúrgicas e as companhias aéreas, a GM estará à mercê das forças globais. Ela não pode competir em uma economia globalizada com o enorme fardo que carrega com os custos herdados. Sejamos claros. A GM não corre o risco de quebrar enquanto tiver uma reserva de caixa. Ela possui uma tonelada de liquidez - US$ 19,8 bilhões em caixa, títulos negociáveis e dinheiro ao qual pode recorrer a partir de um fundo de benefícios previdenciários pré-financiado. Isso sem contar os US$ 8,3 bilhões em linhas de crédito bancário e provavelmente US$ 5 bilhões que a GM poderia sacar de sua lucrativa unidade financeira, a General Motors Acceptance Corp. Mas todo esse dinheiro é apenas uma garantia para que a GM continue seguindo seu caminho por alguns anos. Sem uma grande correção no curso, ela caminha gradativamente para o desastre. Wagoner aumentou a pressão nas últimas semanas, ao sinalizar aos sindicatos que precisa de um alívio de US$ 5,6 bilhões nos custos anuais com planos de saúde, e que pretende antecipar o lançamento de veículos utilitários esportivos (SUVs) e picapes em vários meses. E agora parece que poderá fechar pelo menos duas fábricas. Mas ele provavelmente não vai promover logo uma reestruturação fundamental no modelo de negócios da GM. Sem isso, Wagoner depende do lançamento de novos automóveis e picapes para interromper a queda das vendas. Se falhar, Wagoner provavelmente não estará mais na companhia para as opções dos anos futuros. As que restam envolvem sofrimento para os trabalhadores ou investidores. Eis nossa avaliação de como a crise pode se desenvolver: Uma aterrisagem suave- Há 15 anos a administração da GM firmou um acordo com os sindicatos que tornou impossível para a companhia o fechamento de fábricas ou demissão de funcionários sem sofrer pesadas multas. A GM concordou com benefícios de aposentadoria que a colocaram em grande desvantagem. Muito do que aflige a montadora vem dessa realidade contábil e sua incapacidade de fazer o negócio crescer em casa. A necessidade de manter essas unidades operando, de gerar caixa e alimentar uma teia crescente de marcas envelhecidas comprometem os novos projetos e resultam em muitos modelos que passam anos sem atualização. O princípio sobre o qual a GM foi construída - oferecer um carro para cada segmento - se degradou em uma série de marcas com pouca identidade e linhas de produtos reduzidas e que se sobrepõem. "Ao invés de decidir o que eles querem fazer, eles fazem de tudo e não fazem nada direito", diz Gerald C. Meyers, que leciona administração de crises na Universidade de Michigan. Compare isso com a maneira como a maioria das montadoras bem sucedidas - Toyota, Nissan e Honda - fazem. Elas concentram dólares de pesquisas em um número menor de veículos, colocam neles as tecnologias e acessórios mais novos, os produzem em fábricas dos EUA que não são sindicalizadas e que têm baixos custos. Veja os números: A GM reservou US$ 7 bilhões para investimentos e pesquisa e desenvolvimento no ano passado, contra US$ 15,3 bilhões da Toyota. A parcela gasta na América do Norte foi dividida entre 89 modelos e oito divisões, em comparação a 26 modelos e três divisões na Toyota. Está claro que a GM precisa decidir o que faz bem e livrar-se do resto. O plano de Wagoner parece ser executar uma aterrisagem suave, reduzindo parte dos onerosos custos herdados e, mais provavelmente, fechando algumas fábricas. Mas Wagoner será bastante pressionado para diminuir os custos médicos, pelo menos antes das negociações dos contratos agendadas para 2007. O Center for Automotive Research (CAR) de Michigan, calcula que a GM poderia economizar US$ 1,2 bilhão por ano fechando o rombo nos co-pagamentos e dedutibilidades entre os funcionários. O plano de Wagoner de reverter a queda das vendas com novos modelos faz todo sentido de uma perspectiva: a linha de produtos precisa de um reforço. Mesmo com os descontos que a GM ofereceu de 2001 até o fim de 2004, sua participação de mercado nos EUA caiu 2,5 pontos percentuais. E as coisas ficarão mais difíceis se concorrentes como a DaimlerChrysler passarem a importar carros pequenos e baratos da China. Os executivos da GM demonstram confiança nos novos modelos que devem ser lançados a partir deste ano. De fato a GM escapou da concordata no começo dos anos 90 com uma linha forte de picapes e veículos utilitários-esportivos (e um empurrão da economia). Agora Wagoner está atrelando sua recuperação em parte a uma reação das vendas das grandes picapes e SUVs. Isso é bastante problemático. A GM deveria conseguir algum alento apenas substituindo sua envelhecida linha de picapes, que tem seis anos e vem cambaleando, uma vez que os compradores estão se voltando para veículos mais novos. Porta-voz da GM, Tom Kowaleski diz: "Mesmo que esses mercados não cresçam, há oportunidades para conseguir volume e lucros". Mas as vendas dos grandes SUVs caíram 21,5% no primeiro trimestre, em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo a Autodata, graças à alta dos preços da gasolina e da concorrência. Com 48% do mercado de SUVs de grande porte, a GM está muito exposta a uma retração, segundo a Merrill Lynch. Por outro lado, ela tem só 19% do segmento de SUVs crossover, que hoje responde por quase metade dos SUVs vendidos.

Com uma participação de 24% em um mercado que vende 16,9 milhões de carros nos EUA, por ano a GM perde US$ 2,4 bilhões

A situação financeira da GM está ligada intimamente a quantos carros ela coloca nas ruas, de maneira que seu dreno de caixa piora com cada ponto de participação de mercado que ela perde. Em março, a Merrill Lynch estimou que com uma participação de mercado de 24% e a atual taxa anual de vendas nos EUA de 16,9 milhões de veículos, a GM vai perder US$ 2,4 bilhões em caixa por ano. Se sua participação cair para 20%, a perda de caixa sobe para US$ 4,5 bilhões ano ano. John A. Casesa, analista da Merrill Lynch, estima que a GM pode durar cinco anos até ser atingida por uma crise de liquidez. Mas isso pressupõe que as vendas totais de automóveis nos EUA continuarão no atual nível elevado. Se as taxas de juros, os altos preços da gasolina ou outros fatores afetarem a economia, o quadro vai piorar mais. Com um mercado de 15,4 milhões de veículos e uma participação de 24%, a GM perderia US$ 3,6 bilhões em caixa anualmente, afirma a Merrill; uma participação de 20% provocaria um dreno de caixa de US$ 5,7 bilhões. Um dia do trabalho de ajuste de contas - Não foi coincidência que quando os executivos da GM apresentaram suas diretrizes financeiras para o resto do ano, eles apontaram para a incerteza da obtenção de concessões junto aos sindicatos. Wagoner precisa decidir se pretende implementar medidas incompletas, que vão adiar um confronto inevitável quando o contrato com o UAW vencer, em dois anos, ou se está disposto a arriscar uma guerra trabalhista para conseguir grandes economias mais cedo. A GM não precisa abrir o contrato com o UAW para aposentar funcionários e fechar unidades. Seus funcionários das linhas de montagem têm uma idade média de 51 anos, de modo que muitos estão perto dos 30 anos de serviço que os qualificam para a aposentadoria. Observadores acreditam que Wagoner está preparando o terreno para fechar algumas fábricas e aposentar antecipadamente milhares de funcionários. Isso pode ajudar, mas ainda coloca Wagoner na metade do caminho de onde a GM precisa chegar. Se ele mirar quatro de suas 20 unidades de montagem, a companhia ficaria bem enxuta. A GM poderia economizar US$ 2 bilhões por ano no longo prazo, com o desligamento de 20 mil funcionários, estima Brian A. Johnson, analista da corretora Sanford C. Bernstein & Co. Mas teria um custo de US$ 1,5 bilhão com o desligamento desses funcionários. Mas Wagoner não parece disposto a iniciar uma guerra com o sindicato. A oposição deste poderá se abrandar se a situação da GM piorar dramaticamente nos próximos 12 meses. Mas o UAW poucas vezes concordou com mudanças de regras. Ele fez isso em 1980, quando o governo federal exigiu concessões como parte do socorro à Chrysler, e novamente para Ford e GM em 1981. Pode haver brechas que Wagoner poderia explorar para convencer os trabalhadores a aceitarem mudanças. Lido de uma maneira, o contrato trabalhista não garante benefícios para os aposentados - que respondem por dois terços dos custos da GM com planos de saúde - e cobre apenas os trabalhadores na ativa, segundo afirma Johnson da Sanford C. Bernstein. Mas uma fonte da GM diz que interpretar o contrato desse jeito seria começar uma "guerra nuclear". O UAW poderia encontrar inúmeras maneiras de paralisar fábricas e amarrar a companhia. Wagoner sabe disso. Especialistas acreditam que ele está aumentando as queixas agora para posicionar a companhia para concessões maiores quando as negociações para a renovação do contrato começarem. Mas se o quadro de vendas se deteriorar ao longo do próximo ano, a GM provavelmente terá pouca escolha a não ser forçar um confronto mais cedo. Uma GM menor- Será que Wagoner estará na companhia para fazer essa escolha? Ao aprovar seu plano, o conselho da GM sinalizou que está sendo paciente - paciente demais, no entender de alguns analistas. Tudo indica que Wagoner terá uns dois anos para aplicar sua estratégia. Mas se a taxa de dreno do caixa subir e o preço da ação da GM cair, forças externas pressionarão o conselho, ou tomarão elas mesmas o comando. Investidores parecem acreditar que os problemas de custos acabarão forçando a companhia a pedir concordata. A reserva de caixa da GM torna um pedido de concordata improvável - pelo menos por enquanto. Se isso acontecer, porém, seria algo espantoso. A montadora colocaria diante de um juiz de falências quatro vezes o tamanho dos ativos do maior caso registrado até hoje, o da WorldCom em 2002. O desmembramento ou a concordata: estes são os fantasmas da GM. Eles se tornarão ameaças concretas se a atual administração não conseguir a recuperação prometida nos próximos dois anos. Como seria uma GM saudável? Ela poderia ter cinco unidades de montagem a menos e fabricar cerca de 4 milhões de veículos por ano na América do Norte, ao invés de 5,1 milhões. Isso reduziria sua participação nos EUA para 20%, mas as fábricas operariam com demanda real. Os trabalhadores teriam um plano de saúde competitivo com os custos, mas teriam de recorrer ao auxílio desemprego do governo quando os tempos difíceis exigissem demissões. Vendas de carros e operações financeiras lucrativas criariam um orçamento de pesquisa mais polpudo e focado em quatro ou cinco divisões, ao invés de oito. Ela poderia fabricar até dois terços dos modelos que produz hoje. Conforme aprendemos tempos atrás com empresas como a AT&T, nenhuma companhia é grande demais para quebrar, ou pelo menos encolher dramaticamente. Nem mesmo a poderosa GM. (Tradução de Mário Zamarian)