Título: Judiciário e jurisprudência na instância administrativa
Autor: Helenilson Cunha Pontes
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"Firmada posição mais favorável ao contribuinte na instância administrativa, os processos judiciais de idêntica questão devem ser suspensos"

É notório o amplo desenvolvimento pelo qual tem passado o processo administrativo fiscal no Brasil, sobretudo no âmbito federal, fato que é extremamente positivo para a defesa dos direitos individuais dos contribuintes, bem como para regular e adequada aplicação das leis tributárias pelas autoridades fiscais. As cortes administrativas encarregadas de julgar questões fiscais, via de regra, são compostas por profissionais especializados em matéria tributária, nomeados entre representantes do fisco e dos contribuintes, e realizam julgados pautados pela legalidade, moralidade e imparcialidade. Não raro, o contribuinte recebe maior guarida aos seus pleitos nos tribunais administrativos fiscais do que no Poder Judiciário, tendo em vista a circunstância de que muitas vezes os juízes não conseguem entender a complexidade e a especialidade da matéria tributária, o que é perfeitamente compreensível, haja vista a imensidão de assuntos postos diariamente sob a tutela judicial. Situação comum é aquela em que o contribuinte não se vale do processo administrativo - ou o utiliza apenas parcialmente - para defender-se contra lançamentos tributários que lhe são impostos pelas autoridades fiscais. Essa inércia redunda na propositura de execução fiscal pelos entes tributantes, no bojo da qual o contribuinte deve oferecer garantia, como pressuposto para oferecimento de defesa, através de ação própria, denominada embargos à execução. Uma das causas da não utilização, pelos contribuintes, da via administrativa para a defesa de direitos está na crescente imposição de ônus processuais à interposição de recursos administrativos (depósitos recursais e arrolamentos de bens, por exemplo). Ocorre que, por vezes, outros contribuintes que sofreram idêntica imposição tributária interpõem recursos administrativos e obtêm decisões cancelando os lançamentos tributários, porquanto estes albergariam uma inadequada interpretação da lei tributária. As decisões dos tribunais administrativos, mesmo reiteradas, não são dotadas de efeito geral, ou seja, atingem apenas o contribuinte que é parte no processo administrativo em que foram proferidas. Diante disso, indaga-se: como tratar o lançamento tributário, já em fase de execução fiscal, que contempla uma interpretação inadequada da lei tributária, segundo o entendimento da própria administração tributária, através do seu tribunal administrativo fiscal?

Uma das causas da não utilização da via administrativa está na crescente imposição de ônus processuais

Parece-nos que a resposta para tal questão está no princípio da legalidade tributária, segundo ao qual é vedado ao poder público exigir um tributo que não esteja autorizado em lei. O Poder Judiciário não pode dar prosseguimento à cobrança judicial, que em última análise conduzirá à expropriação de bens, de um título executivo extrajudicial que contempla um direito de crédito que o próprio credor reconhece ser indevido por seu próprio tribunal administrativo. Noticiado o fato de que a jurisprudência administrativa se firmou no sentido da nulidade da interpretação da lei em que se funda o lançamento tributário, o mais prudente (além de justo) é determinar-se a suspensão do processo judicial e a revisão administrativa do lançamento fiscal, à luz dos precedentes administrativos que tratam de idêntica questão. Neste momento, os formalistas me contestarão afirmando que se o contribuinte não utilizou o processo administrativo no momento adequado, resta-lhe apenas a via dos embargos à execução (precedido de garantia). Esta interpretação, além de excessivamente formalista, desconsidera a importante circunstância de que a relação jurídica tributária pauta-se pelo princípio da legalidade estrita, segundo o qual não se concebe a exigência de tributo que não tenha amparo em lei válida. Se o lançamento do tributo é inválido segundo a própria jurisprudência administrativa, pergunta-se: primeiro, qual a razão para se exigir do contribuinte o oferecimento de garantia e a propositura de uma ação própria para que as razões da ilegalidade da imposição fiscal sejam reproduzidas judicialmente? Segundo, como poderá o representante judicial da Fazenda pública sustentar judicialmente a validade da interpretação legal consubstanciada no lançamento tributário executado, se a própria administração tributária, através de seu tribunal administrativo fiscal, vem sustentando por reiteradas vezes ser aquela interpretação ilegal? E terceiro, qual a razão lógica para se exigir que o Poder Judiciário, já abarrotado de causas, fique durante anos decidindo acerca da validade de um ato administrativo de lançamento que consubstancia uma interpretação ilegal da lei tributária, na visão do próprio poder público (credor na relação tributária), através do seu tribunal administrativo fiscal? Por essa razões é que sustento que, uma vez firmada determinada interpretação da lei tributária mais favorável ao contribuinte nas cortes administrativas fiscais, os processos judiciais que albergam idêntica questão devem ser suspensos, determinando-se à autoridade administrativa a revisão do lançamento à luz da nova jurisprudência administrativa, com fulcro no artigo 149, inciso VIII do Código Tributário Nacional (CTN) e, sobretudo, por imposição do princípio da legalidade tributária. Nunca é demasiado lembrar que o processo judicial é um instrumento de que se vale o direito para promover a justiça e não pode ser utilizado como mecanismo de afirmação de formalismos e idiossincrasias judiciais que desnaturam a relação jurídica tributária. O processo é instrumento de justiça e não de formalismos injustificados.