Título: Empresas querem fim do trabalho escravo
Autor: Liana Melo
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2005, EMPRESA & COMUNIDADE, p. F6

Ethos coordena acordo que prevê restrições comerciais e financeiras a quem não se enquadrar

Além de ter sido reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como um exemplo de país que tem se esforçado para diminuir o trabalho escravo, o Brasil já dispõe de um empresariado que demonstra que a tolerância com essa prática chegou ao fim. No último dia 19, entrou em vigor o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, assinado por 78 empresas e entidades de classe. Restrições comerciais e financeiras, como a recusa de linhas de crédito por parte dos bancos participantes, serão aplicadas pelas empresas que aderiram ao pacto. As medidas vão atingir primeiramente os 160 nomes, entre pessoas físicas e jurídicas, que constam da lista suja do Ministério do Trabalho, em sua grande maioria fornecedores do início da cadeia produtiva. Fazer parte dessa lista significa ter sido flagrado em condições análogas à escravidão. "Não dá mais para fingir que não existe trabalho escravo no Brasil. Até porque isso pode significar perda de mercado", pontua o presidente do Instituto Ethos, Oded Grajew, um dos principais articuladores do pacto. O trabalho foi feito em conjunto com a ONG Repórter Brasil, que levou nove meses rastreando a cadeira produtiva, e a OIT, que ajudou a negociar o pacto junto com o Ethos. Em plena era da responsabilidade social, o registro de ocorrência do trabalho escravo descortina a convivência de dois países. Um deles antenado com as exigências do mercado globalizado e outro, alheio inclusive à legislação que proíbe o trabalho escravo na Convenção 29 da OIT e no Código Penal Brasileiro, em seu artigo de 149. O problema é que esses dois brasis nem sempre estão tão distantes e, muitas vezes, chegam mesmo a se encontrar. Foi o que aconteceu com o Pão de Açúcar, um dos maiores grupos varejistas do país. "Um dos nossos fornecedores foi denunciado, no início do ano, por comprar carne de uma fazenda que escravizava trabalhadores", informa a Ombsdman do grupo, Sueli Renberg. A surpresa levou o Pão de Açúcar a incluir, desde janeiro, uma cláusula em seus contratos de fornecimento que prevê o rompimento imediato caso se constate algum tipo de irregularidade trabalhista na cadeia produtiva. A pecuária é a atividade econômica onde mais se tem registrado casos de trabalho escravo. Segundo a OIT, 43% dos resgates que ocorreram em 2003 foram feitos em fazendas de criação de gado. Carrefour e Wal-Mart seguiram o exemplo e vão passar a exigir o mesmo de seus fornecedores. O Banco do Brasil já anunciou que vai cancelar créditos no valor de R$ 100 milhões a cerca de 60 empresas envolvidas com trabalho escravo. Foi às vésperas de 13 de maio, quando é comemorada a assinatura da Lei Áurea e da libertação dos escravos, que a Organização Internacional do Trabalho anunciou que ainda há cerca de 25 mil trabalhadores escravizados em todo o Brasil. Como mundialmente são 12,3 milhões de pessoas nessa situação, o Brasil, proporcionalmente, não está numa situação tão desconfortável. Ainda assim, a situação é preocupante, sobretudo, nas regiões Norte e Nordeste. O Pará lidera a lista, seguido da Bahia e Mato Grosso. Mas o Rio de Janeiro também faz parte da lista. A escravidão contemporânea ocorre sob a forma de dívida, já que o trabalhador fica escravizado até que salde gastos com alimentação, transporte, adiantamentos e até mesmo com a aquisição de ferramentas para o trabalho. "Não foi fácil costurar esse pacto", admitiu Grajew. Como em alguns casos os pontos de vista ético e humano não bastavam para conscientizar certos setores do empresariado, partiu-se, então, para a lógica puramente econômico-financeira. O que significa dizer que hoje a prática pode ser usada como pretexto para barreiras comerciais. Ainda assim, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) recusou-se a aderir ao pacto, por discordar da lista suja. Chegou inclusive a apelar ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a OIT. O setor agrícola responde por 24% das ocorrências de trabalho escravo, perdendo apenas para pecuária e desmatamento. Apesar de as carvoarias serem responsáveis por 1% do total de trabalhadores escravos no Brasil, foi esse o primeiro setor econômico a assinar um pacto setorial. Foi em meados de 2004. As imagens dos escravos do aço na região de Carajás, no Norte do país, levou a Associação das Siderúrgicas de Carajás a iniciarem o boicote aos fornecedores de ferro gusa.