Título: Dividida, França vota Constituição da UE
Autor: Humberto Saccomandi
Fonte: Valor Econômico, 27/05/2005, Internacional, p. A9

Pesquisas apontam que franceses dirão "não" em referendo, mas ainda há 20% de indecisos

O presidente da França, Jacques Chirac, jogou sua última cartada na ontem para tentar convencer os eleitores franceses a aprovar, no plebiscito deste domingo, o projeto de uma Constituição Européia. Em pronunciamento na TV, Chirac perguntou: "Nosso modelo social será fortalecido com a Constituição?". E ele próprio respondeu: "Sim. Será uma forte resposta ao risco de nossa produção migrar para o exterior. Se a parceria franco-germânica enfraquecer, aqueles que têm um conceito ultraliberal de Europa vão se fortalecer. A Europa poderia então ser reduzida a só uma zona de livre comércio". Mas as pesquisas de intenção de voto continuam dando pequena vantagem para o "não". A rejeição da Constituição pelos franceses pode atrasar planos de mais integração na Europa e dificultar a administração da UE por alguns anos, mas é improvável que cause danos mais significativos. Pesquisa realizada pelo instituto Ifop, divulgada anteontem, indicava que 54% dos que declararam o voto iriam rejeitar a Constituição (votar "não"), contra 46% que se disseram a favor. Mas há um percentual alto, de até 20%, de indecisos, o que indica que o resultado ainda é incerto. Curiosamente, o projeto de Constituição foi fruto do trabalho de uma comissão liderada pelo ex-presidente francês Valery Giscard d'Estaing. Para entrar em vigor, a Constituição precisa ser aprovada pelos 25 países-membros da UE. Mas só alguns precisam, por lei, levar o tema a consulta popular. A Itália, por exemplo, já aprovou a Constituição pelo Parlamento. Um dos principais obstáculos à aprovação da Constituição é que pouca gente sabe de fato do que se trata. O texto constitucional é extenso (448 artigos), complexo e pouco "user friendly", isto é, não é tão fácil assim de ser usado. Ela pretende reunir num único corpo jurídico os diversos tratados que ao longo do tempo constituíram a UE, além de introduzir reformas para agilizar a administração. Entre as principais mudanças está o fim do poder de veto dos países sobre as decisões do Conselho de Ministros (instância máxima da UE), que hoje precisam ser por consenso. As decisões ocorreriam por maioria qualificada, que exigiria um certo número de países (para evitar o predomínio dos grandes) e uma certa parcela da população da UE (para evitar o predomínio dos pequenos). Ela institui os cargos de presidente e chanceler, com liberdade de tomar decisões em nome do bloco. E reduz a Comissão Européia (órgão executivo da UE) e transfere de parte de suas atribuições para o Parlamento Europeu. Como os eleitores do plebiscito não compreendem direito no que estão votando, e muito menos as implicações disso, outras motivações acabam definindo o voto. No caso da França pesam a impopularidade do presidente Chirac e o temor difuso no país de erosão de influência na UE, de mais desregulamentação e de perda de empregos. É uma reação quase protecionista. Muitos analistas apostam, porém, que na última hora um número considerável de eleitores deixará de lado as picuinhas internas e seguirá a orientação tanto do governo (do presidente Chirac e seu aliado, o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin) quanto do principal partido de oposição (o socialista) de votar "sim" à Constituição. Mas e se isso não ocorrer? E se a França de fato rejeitar a mais importante reforma da União Européia desta década? Os defensores do "sim" prevêem o apocalipse, desde a paralisação da administração da UE até o risco de balcanização (isto é, a divisão informal em agrupamentos menores, cada um indo mais ou menos por conta própria) ou mesmo colapso do bloco. Essa é uma velha tática, usada desde sempre, de convencer pelo medo os reticentes eleitores europeus a apoiar a integração. Mas é pouco provável que qualquer cenário apocalíptico se concretize. A Constituição só entraria em vigor, de todo modo, em 2007. Até lá, há tempo para que os países que inicialmente rejeitarem a Constituição (a Holanda realiza plebiscito na semana que vem e também deve votar "não") coloquem a questão novamente em votação. Nos últimos dias, vários políticos europeus já falavam abertamente sobre essa possibilidade, diante da provável rejeição na França e na Holanda. Mas a vitória do "não" traria alguns impactos de curto prazo: o provável adiamento de uma nova ampliação da UE (Bulgária e Romênia esperam entrar no bloco em 2007); a indefinição quanto à negociação para a entrada da Turquia (um dos argumentos dos defensores do "não" é evitar o ingresso turco na UE); o prolongamento do atual processo decisório, por consenso, o que dificultaria a tomada de decisões importantes e polêmicas. É esperado que isso cause um certo nervosismo nos mercados e afete o euro. O grau do impacto, porém, vai depender do nível da rejeição nos países da UE que votarem depois da França. Isso permitirá dizer se o projeto de Constituição sofrerá apenas um atraso ou se está irremediavelmente liquidado.