Título: França diz 'não' à Constituição da UE e abre crise no bloco
Autor: Humberto Saccomandi
Fonte: Valor Econômico, 30/05/2005, Internacional, p. A8

Resultado deve afetar mercados, gerar crise no governo francês e pressionar a moeda comum

A França, motor da unificação européia junto com a Alemanha, votou pela primeira vez contra um projeto de integração. Segundo projeções, o projeto de Constituição européia foi rejeitado em referendo popular ontem por 56% a 44%. O resultado, já esperado, pode enterrar o atual projeto constitucional, deve causar problemas à União Européia, gerar uma crise de governo na França e afetar os mercados europeus hoje, com turbulência nas bolsas e pressão sobre o euro. A Constituição européia é uma tentativa de reunir num só texto todos os tratados que ao longo do tempo foram constituindo a atual UE. O projeto previa, entre outras coisas, uma reformulação no sistema de tomada de decisões na UE (agora com 25 países-membros), a fim de deixá-lo mais ágil. Previa ainda a criação dos cargos de presidente e ministro das Relações Exteriores da UE, com poderes executivos, e a ampliação dos poderes do Parlamento Europeu, único órgão da UE eleito diretamente. Mas, e aí está o problema, para entrar em vigor a Constituição precisa ser aprovada por todos 25 países (alguns pelo Parlamento, outros em consultas populares). Dez países já a haviam aprovado, mas a rejeição da França coloca esse processo em xeque e deve estimular a população de outros países a votar contra o tratado constitucional. Em pronunciamento pela TV, o presidente francês, Jacques Chirac, admitiu a derrota. "É uma decisão soberana, e eu tomo nota." O que os europeus se perguntavam ontem à noite é: o que acontecerá agora? Chirac procurou responder de modo tranquilizador: "A União Européia continuará a funcionar com base nos tratados atuais", disse. Mas não é tão simples assim. Em primeiro lugar, a vitória do "não" por 12 pontos percentuais no referendo francês foi categórica. Diante desse grande "não", dificilmente o governo francês, qualquer que seja, poderá trazer a questão a nova consulta popular no curto prazo. Assim, na melhor das hipóteses, o tratado constitucional, que a UE esperava pudesse entrar em vigor em 2007, será adiado por um bom tempo. Outros países, a começar pela Holanda nesta quarta, também devem rejeitar o texto, criando ainda mais obstáculos. Apesar de autoridades européias não admitirem, o plano B deve consistir numa reformulação do texto da Constituição (o que pode levar anos) e na adoção o quanto antes de alguns dispositivos que podem entrar em vigor sem consulta popular (não há consenso ainda sobre quais seriam). "Pode haver um plano B no sentido tecnocrático, mas no sentido político e filosófico, mais profundo, não há plano B", afirmou ontem Dominique Moisi, vice-diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais. Um dos impactos imediatos mais sérios diz respeito ao Orçamento da UE nos próximos sete, cuja definição deveria sair na cúpula da UE em junho. O projeto orçamentário pode ser adiado. Isso afetaria diretamente o Brasil, pois esse Orçamento deve definir, por exemplo, gastos com subsídio agrícola europeu. O seu adiamento pode até prejudicar a capacidade de negociação da UE na atual rodada de liberalização comercial da OMC. No longo prazo, deve ser adiado o ingresso de novos membros na UE. Bulgária e Romênia esperam entrar em 2007. Já a negociação com a Turquia pode ficar em suspenso. Um dos slogans dos críticos da Constituição é que ela favoreceria o ingresso da Turquia, país muçulmano visto com desconfiança por boa parte da população. A rejeição da Constituição deve afetar o euro, ainda que no curto prazo. A moeda única, que este ano já caiu 7,5% (2,2% só neste mês) em relação ao dólar, deve recuar ainda mais hoje (esse movimento começou ontem à noite na abertura dos mercados asiáticos). Além do voto francês, a moeda já vem sendo pressionada pelos recentes dados negativos de crescimento na Europa. A indefinição em relação à estrutura institucional da UE deve afetar ainda as bolsas na Europa. (O jornalista Humberto Saccomandi viaja a convite do governo francês)