Título: O ensino superior noturno vai além da educação
Autor: Armando Terribili Filho e Hélia Sônia Raphael
Fonte: Valor Econômico, 30/05/2005, Opinião, p. A10

A qualidade dos cursos não é o único problema

A procura de vagas para os cursos de graduação no período noturno tem crescido constantemente. Os jovens querem estudar à noite para exercer uma atividade profissional remunerada durante o dia e garantir seu sustento financeiro (total ou parcial) durante os anos de estudo. Há também o interesse do estudante em iniciar o desempenho de atividades profissionais relacionadas à área de estudo visando unir a teoria à prática, além de conseguir um diploma. Os resultados do último censo da educação superior realizado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) indicam que, em 2003, o número de matrículas no período noturno era de 2.270.653, ou seja, 58,4% do total nacional de 3.887.771 matrículas na educação superior. Em 1998, o percentual era de 55,3%. No Estado de São Paulo, a concentração de alunos do período noturno chama a atenção: 68,8% do total das 1.050.054 matrículas em 2003. Algumas iniciativas do governo de São Paulo têm procurado sustentar o crescimento do ensino superior noturno, como a Constituição Paulista de 1989, que exige que pelo menos um terço das vagas das universidades estaduais (UNESP, UNICAMP e USP) seja para o período noturno. Esta não é a realidade nacional de hoje: apenas um quinto das vagas do ensino superior noturno está nas universidades públicas, pois a maioria dos alunos (mais de 82%) está nas instituições privadas (1.863.209). A legislação educacional poderia ter avanços mais agressivos, tanto nos níveis estadual e federal, para incentivar a criação de políticas públicas educacionais que atendam à demanda de vagas e ao entorno educacional, sobretudo às questões de trânsito, transporte e segurança pública - aspectos que têm afetado negativamente o dia-a-dia do estudante do ensino noturno (o "estudante-trabalhador", categoria crescente a cada dia no país). Estes aspectos estão evidenciados em um levantamento que realizamos em outubro de 2004 com 166 estudantes de duas instituições privadas da cidade de São Paulo, alunos de Administração de Empresas (instituição localizada na zona oeste da cidade) e de Ciências da Computação (instituição situada na região sudeste da cidade). Segundo o estudo, mais de 90% dos estudantes trabalham durante o dia; desses estudantes-trabalhadores, 88% afirmam ir direto do local de trabalho para a escola. Da amostra, 78% informam ter perdido "pelo menos uma aula" no semestre, em decorrência de dificuldades de locomoção; 38% afirmam ter perdido "pelo menos uma prova" pela mesma razão. O período de locomoção (entre 18h e 19h30) coincide com a faixa horária dos maiores congestionamentos. Mais de 20% dos estudantes demoram mais de uma hora para chegar à faculdade. Com isso, 30% dizem chegar atrasados à instituição quase que diariamente. Há também significativos atrasos decorrentes da realização de atividades profissionais após o expediente normal de trabalho. Registra-se ainda que 30% dos entrevistados têm restrições de transportes públicos para a locomoção da escola à sua residência, após o fim das aulas.

Alunos que trabalham enfrentam dificuldade de locomoção, estão sujeitos à violência e têm alimentação ruim

Perguntamos: por que não se discute com o empresariado a criação de políticas com vigência nos meses letivos, para liberação diária dos estudantes do ensino superior noturno com pelo menos duas horas de antecedência em relação ao horário de início das aulas? Sobre a segurança, os índices obtidos na pesquisa são assustadores: 19% dos estudantes já foram vítimas de violência após as aulas, no percurso até a residência; e 15% sofreram o mesmo entre o local de trabalho e a escola. Os casos são de assalto à mão armada (nas proximidades das instituições, em semáforos e em paradas de ônibus), seguido de furto de veículos, perseguições, seqüestros-relâmpago e tentativa de seqüestros. Outras perguntas que fazemos: não deveria existir um policiamento mais ostensivo próximo às escolas, estações de metrô e pontos de ônibus, sobretudo nos horários de entrada e saída dos estudantes? Não poderia haver uma melhoria no nível de iluminação pública nas regiões próximas às escolas? A condição de alimentação diária do estudante pode ser considerada como deficiente: apenas 14% dos alunos jantam normalmente, 37% comem um lanche e 49% não comem nada substancial antes das aulas. Os motivos são falta de tempo e preços elevados nos serviços oferecidos nas escolas. Perguntamos: se o estudante almoça e janta (ou pelo menos come um lanche) fora de casa, por que o benefício de alimentação concedido parcialmente pelas empresas não poderia ser acrescido, para estudantes, em um percentual? A pesquisa deixa claro que, quando se fala que a educação pode ser um dos fatores de mudança em um país, que a educação é um dos elementos essenciais para o desenvolvimento, e quando se critica a educação brasileira pela sua baixa qualidade, não se pode analisar exclusivamente o aspecto "intramuros" - sala de aula, laboratórios e bibliotecas -, que leva a responsabilizar professores e administradores da área educacional. É necessário que se obtenha o compromisso de várias áreas da sociedade, sejam públicas ou privadas, para melhorar a qualidade da educação noturna. A prefeitura de um município, por exemplo, deve oferecer transporte adequado, efetuar gestão do trânsito eficiente e oferecer iluminação pública condizente com nossa realidade. A partir da existência de políticas públicas, estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada, investimentos em infra-estrutura, aliados ao atendimento das perenes solicitações dos professores quanto à melhoria das suas condições de trabalho, poderemos construir (ou reconstruir?) um país no qual a cidadania seja reconhecida e valorizada. Caso contrário, a frase de Bilac, "não verás país nenhum como este", terá de ser truncada, plagiando o título de um livro do escritor Ignácio de Loyola Brandão: "não verás país nenhum...".