Título: Meta de inflação perpetua juro alto
Autor: Luiz Sérgio Guimarães
Fonte: Valor Econômico, 02/06/2005, Finanças, p. C1

Estudo da GRC Visão expõe as mudanças necessárias no regime do BC

O Brasil está condenado a conviver com elevadas taxas de juros e reduzidas taxas de crescimento enquanto não for alterado o sistema de metas de inflação introduzido às pressas em junho de 1999 para substituir a malograda âncora cambial. Após seis anos de vigência do sistema, conclui-se que foi ineficiente em desinflacionar a economia brasileira, não por ser um regime monetário essencialmente ruim mas porque, no Brasil, obedece a regras que promovem o seu engessamento. O diagnóstico é de estudo elaborado pelos economistas Alex Agostini e Fabio Ono da consultoria GRC Visão, obtido com exclusividade pelo Valor. O relatório aponta as principais distorções do regime de metas atualmente em vigor no país e propõe medidas para corrigi-las. Sem elas, o que se está vendo hoje - juros altíssimos que derrubam o PIB mas apenas fazem cócegas no IPCA - irá se perpetuar. As distorções mais significativas são a inércia inflacionária produzida por preços indexados a índices amplos - preços estes imunes aos efeitos contracionistas da política monetária; utilização como parâmetro das metas de um índice cheio, o IPCA, inadequado; o respeito a um alvo central rígido e a um ano-calendário inflexível. "A atual postura do Copom do Banco Central em relação à determinação da política monetária está, no mínimo, equivocada", diz Alex Agostini. Para mostrar a baixa eficácia do regime de metas como aplicado hoje no Brasil, a consultoria compara os resultados de algumas variáveis econômicas de um período pré-meta - de junho de 94 a maio de 1999 - com a fase pós-meta, de junho de 1999 a abril de 2005. Não há, por exemplo, grande diferença em termos de crescimento econômico entre um período e o outro. O PIB cresceu a uma média anual de 2,6% na fase pré-meta e 2,4% no período pós-meta. Mas, pelo menos em termos de combate à inflação, o regime de metas é mais efetivo que o anterior? Nem tanto. O IPCA médio pré-metas foi de 10,95% ao ano e o pós-metas foi de 8,60%. O novo sistema permitiu de fato uma queda importante da Selic, de 38,7% para 18,9%, mas torna impossível um aprofundamento da baixa. "Seguramente a mudança de um regime de câmbio fixo, em que a variável de ajuste era a taxa nominal de juros, para um regime cambial flutuante e sobre o sistema de metas de inflação, em que o ajuste se dá via reservas internacionais, reduziu o patamar da Selic, porém não de forma significativa", adverte Agostini. Mas a sociedade se beneficiou diretamente com o regime de metas? De jeito nenhum. O estudo da GRC Visão mostra que o rendimento médio real cresceu 4,9% ao ano no período pré-sistema de metas e se retraiu-se em 3,9% depois de implantado o sistema. O regime de metas foi introduzido em junho de 1999 por indicação do Fundo Monetário Internacional (FMI). O Fundo convenceu o governo brasileiro a adotá-lo usando como exemplo as experiências bem-sucedidas colhidas na Inglaterra, Suécia, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Chile, Espanha, México e Israel. Mas foi transposto para cá sem que fosse feita qualquer adaptação às condições da economia brasileira. Sem a tropicalização necessária, a adoção desse sistema "condenou à perpetuação da taxa de juros básica doméstica em níveis extremamente elevados", observa Agostini. Desde março de 1975 o Brasil não sabe o que é taxa de juro nominal inferior a 15%. Desde que a série histórica da taxa de juros nominais foi oficialmente contabilizada, a partir de janeiro de 1974, apenas em cinco ocasiões ela ficou abaixo de 15% - fevereiro de 74, 14,7%; março de 74, 14,8%; agosto de 74, 12,7%; outubro de 74, 13,5%; e março de 75, 13,3%. Na história do Plano Real, apenas nos meses de janeiro e fevereiro de 2001 foi possível vislumbrar uma taxa de juro próxima de 15% (15,25% ). A Selic não pode hoje sequer chegar perto de 15% por causa da estrutura de preços da economia. Hoje, utiliza-se o IPCA cheio como índice que baliza as metas de inflação, sendo sua composição formada por aproximadamente um terço de preços administrados pelo governo, que têm reajuste anual com base nos IGPs, e um pouco mais de dois terços de preços livres, que variam conforme o nível da demanda na economia. Como os IGPs são mais sensíveis à variação cambial e aos preços das commodities (agrícolas, minerais e metálicas), a inércia inflacionária provocada sobre o IPCA acaba sendo combatida com alta dos juros, remédio que não surte efeito sobre uma inflação de preços administrados ou de choques de oferta. Como os preços administrados pesam muito menos que os preços livres, as doses de juros são agudas e prolongadas. É necessário um grande desestímulo na atividade econômica para que o recuo dos preços livres acabe por surtir efeito sob os preços administrados. "Essa é uma ação que se não for bem dosada acaba levando a economia à estagnação e recessão, como foi observado em 2003", alerta o consultor da GRC Visão. Já que o BC só usa o juro alto para reduzir expectativas de inflação, na verdade fica-se na dúvida se o seu objetivo é de fato combater a inflação ou desestimular o crescimento econômico. São os preços administrados os que sabotam o cumprimento das metas de inflação. Os contratos vigentes, indexados aos IGPs, determinam uma situação em que a taxa de inflação passada afeta o nível corrente de preços, provocando um processo inercial. A taxa de juros é ineficaz para a redução da inflação, pois influencia somente os reajustes futuros nos preços livres, através de um desaquecimento da economia. Como corrigir isso? A solução é simples, mas nem por isso o governo mostra-se disposto a adotá-la. Consiste na adoção de um IPCA capaz de reagir à política monetária. Se as taxas de inflação efetiva e esperada balizam a Selic e se alguns componentes da taxa de inflação não sofrem influência dos juros, então tanto a arma (juros) quanto o alvo (inflação) precisam ser calibrados. Isso não significa que o BC deve desconsiderar as variações de preço resultantes de reajustes de preços administrados e de choques de oferta, já que estes afetam a todos, empresas e indivíduos. Seria, contudo, mais sensato utilizar a Selic como um instrumento de ataque somente sobre os preços efetivamente sensíveis aos juros, isto é, sobre a inflação de demanda. "Para tanto, o aconselhável é que na determinação de política monetária o IPCA seja recalculado a partir da extração dos preços administrados e a re-ponderação desses itens para os demais", recomenda Agostini. Isso seria complicado para o IBGE? Nem um pouco, trata-se de brincadeira de criança para ele. Se usar um core específico do IPCA, o BC estará na boa companhia dos BCs do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia. E os contratos de energia elétrica e telefonia indexados aos IGPs passados? A FGV poderia calcular índices específicos para estes setores, que de fato refletissem seus aumentos de custos. O que ocorre hoje é uma dupla incidência além de uma retro-alimentação: os dois setores já estão dentro dos IGPs, são afetados por aumentos que não lhes dizem respeito e também afetam o índice. O sentido das mudanças no regime de metas seria o de conferir maior flexibilidade, sobretudo para a absorção dos freqüentes e inevitáveis choques de oferta. Para tanto, há três providências: a democratização do Conselho Monetário Nacional (CMN) por meio de sua ampliação de três para nove membros, a instituição de uma faixa de flutuação do núcleo de IPCA, sem meta central (como ocorre no Canadá) e a delimitação de um horizonte sempre 12 meses a frente. A política monetária deixaria de ser refém dos acontecimentos de curto prazo e administraria uma banda de flutuação referenciada em índice suscetível ao juro. Ortodoxas e com respaldo técnico internacional, essas alterações não abalariam a credibilidade do BC.