Título: De panacéia a placebo?
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2005, Opinião, p. A11

A última rodada de aumentos da taxa de juros trouxe uma mudança qualitativa no debate sobre a atual política monetária brasileira. Agora, em lugar de uma simples dicotomia entre favoráveis e contrários à fixação da taxa Selic em níveis estratosféricos como instrumento eficaz de controle da inflação, surgiu uma terceira posição, dissidência da primeira, que defende o ponto de que o arrocho monetário já não funciona mais. A idéia é de que o nível da taxa de juros teria superado um teto além do qual seus efeitos antiinflacionários deixam de existir. Algo como se o que antes era a panacéia, tivesse agora se tornado um placebo. Essa posição é alimentada por velhas e novas percepções sobre os limites da política monetária no controle da inflação brasileira. Dentre as velhas, destaca-se a sua incapacidade em lidar com os preços administrados que, no Brasil, formam um importante componente da taxa de variação dos preços. Dentre as novas, está a proposição de que o governo está agindo de forma contraditória ao, de um lado, apertar os juros e, de outro, liberar crédito por meio de novas modalidades de financiamento. A questão, porém, é mais ampla. Não se trata simplesmente de um problema de grau - a taxa de juros funcionaria, mas somente até certo ponto. É um problema do próprio modelo econômico - na economia brasileira, a capacidade de a taxa de juros controlar a inflação é pequena, qualquer que seja o seu nível. Os resultados discutíveis da atual política de arrocho monetário não permitem mais encobrir o entendimento de que a economia brasileira, assim como a de outros países em desenvolvimento, funciona de forma distinta do que prescrevem os manuais de macroeconomia, em geral escritos nas e para as economias desenvolvidas. Nos termos do debate econômico, significa reconhecer que os chamados "canais de transmissão" entre a política monetária e a inflação não são insensíveis às diferenças de renda, grau de abertura, profundidade dos mercados de capitais, padrões de consumo (em especial, a distribuição entre bens duráveis e não duráveis) e outras características estruturais das diversas economias. São muitos os canais de transmissão discutidos na literatura econômica. Desses, os mais explorados são o canal da taxa de juros; o canal da taxa de câmbio e o canal do crédito. Cabe menção ainda a outros, menos enfatizados pela corrente principal da teoria, mas não menos importantes: o canal de custos e o canal fiscal. Não há como discuti-los todos no espaço dessa coluna. Porém, como ilustração, pode-se imaginar uma situação simples e avaliá-la em economias com diferentes características estruturais: por exemplo, como um aumento dos juros se transmite aos níveis de consumo das famílias? No plano monetário, o que vale para economias com índices de endividamento médio do setor privado da ordem de 100% do PIB não necessariamente valerá para outras com índices muito inferiores, como o Brasil. Também existirão diferenças quanto aos mecanismos de criação de crédito entre economias com sistemas financeiros mais ou menos completos. A título de comparação, na economia americana, o impacto esperado de um aumento dos juros sobre o consumo tende a ser forte e rápido devido ao alto grau de endividamento das famílias e porque, sendo uma sociedade afluente, parte importante do consumo é de produtos supérfluos, com alta elasticidade-renda. Ao mesmo tempo, parcela relevante da poupança das famílias está no mercado acionário. Como esse costuma reagir a aumentos dos juros com queda no valor das ações, cria-se um efeito riqueza negativo, que reforçaria o desestímulo ao consumo. Por isso, um aumento da taxa de juros pode rapidamente provocar redução da demanda e do grau de utilização da capacidade produtiva. Resultado: os preços tendem a cair devido ao excesso de oferta potencial.

Taxa de juros interfere pouco no consumo do país porque a maior parte dos gastos das famílias é de subsistência, de baixa elasticidade-renda

No Brasil, a taxa de juros pouco interfere no consumo porque a parcela financiada dos gastos das famílias é proporcionalmente menor e, acima de tudo, porque a sua maior parte é de produtos de subsistência, de baixa elasticidade-renda. Isso ocorre também porque, em se tratando de economia com baixo grau de intermediação financeira, é maior o espaço para mecanismos outros de crédito como, por exemplo, cheques pré-datados e afins. Com isso, os juros acabam embutidos nos preços, pois é praxe cobrar um preço "parcelável sem juros" e conceder descontos nas compras à vista. Aumentos da taxa básica de juros são repassados às taxas do crédito ao consumo e podem se transformar em aumentos do preço à vista. Resultado: se existe um canal de transmissão imediato entre juros e preços, ele poderá funcionar no sentido direto, isto é, um aumento da taxa de juros trazendo aumento de preços. Se tudo isso faz sentido, então o consumidor americano pode perceber um aumento da taxa de juros como menos renda disponível para consumo devido aos maiores encargos sobre suas dívidas. Já o consumidor brasileiro pode perceber o mesmo aumento como inflação! No caso da economia brasileira, o componente da demanda agregada que tende a ser mais influenciado pela política monetária apertada é o investimento. Aqui, porém, atua mais intensamente o canal da taxa de câmbio. Como é sabido, o aumento da taxa de juros tende a apreciar a moeda local devido à maior atração de capitais externos. O canal do câmbio remete para o plano da economia real, sobre o qual traz implicações de longo prazo. Com o real valorizado, as decisões de investimento são postergadas com o que, ao invés de ampliação de capacidade produtiva, mantém-se congelado o produto potencial que, por sua vez, realimenta as expectativas de pressões inflacionárias no futuro, quando (e se) as taxas de juros forem reduzidas. O grave problema é que em uma economia atrasada, "desfinanciada" e instável, a competitividade empresarial depende de expectativas favoráveis de crescimento econômico que viabilizem novos investimentos, que possibilitem a adoção das "best-practices" produtivas (modernização tecnológica), e que, finalmente, gerem produtividade e eficiência e, com isso, a sustentabilidade de todo esse processo. A moral dessa história é que a taxa de juros não é o remédio certo que deixou de funcionar; quer dizer, não é a panacéia que se tornou placebo. Sempre foi um veneno que, com a longa duração do tratamento, provoca níveis perigosos de intoxicação do paciente.