Título: O governo insiste em ser um refém de seus aliados
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2005, Opinião, p. A10

A liberalização do mercado financeiro, concluída nos governos de Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu uma ligação direta entre os mercados financeiros e a política. A política passou a contaminar o mercado de forma quase instantânea. Os movimentos de capitais, que acontecem ao sabor de instabilidades antes restritas à vida política, são rápidos e definitivos. No jargão econômico, são chamados de "turbulências" e, devido à sua intensidade, acabam interferindo na economia do país. Essa foi a lógica da simbiose mercado financeiro/política nos governos FHC, da qual o processo eleitoral que levou operário Luiz Inácio Lula da Silva ao poder foi o exemplo mais dramático e extremo. Ao contrário do que acenava o penoso processo eleitoral de 2002, sacudido por turbulências de tal intensidade que não se apostava na posse do novo governante antes de um default, o governo Lula contrariou, até agora, a regra. Favorecido por uma boa conjuntura internacional, uma política macroeconômica ortodoxa e bons resultados econômicos, o governo Lula não foi incomodado por turbulências. O mercado tem passado ao largo das instabilidades políticas e a economia atravessa um bom momento. Se de novo se estabelecer a simbiose entre uma e outra, a culpa será exclusivamente do governo. Suas reações ao escândalo dos Correios emitem sinais dúbios e, na falta de clareza, a interpretação é livre. Podem, por exemplo, indicar que o episódio tem um potencial explosivo muito maior. Desde que foi divulgada a gravação onde o funcionário dos Correios, Maurício Marinho, descreve um esquema de corrupção na empresa que envolveria o presidente do PTB, Roberto Jefferson, observa-se dois movimentos simultâneos: um, do PTB, que emite sinais públicos (e recados igualmente claros) de que tem armas contra o governo e irá usá-las; outro, do governo, em sucessivas e desesperadas ações para evitar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Jefferson, o acusado, tomou a posição de ofendido; o governo, por seu lado, tornou-se o acusado pelo acusado, evidencia temores e mostra-se refém do aliado. O PTB tem urdido sucessivos fatos para mostrar à opinião pública que o governo é seu refém. Primeiro, Jefferson se defendeu mostrando uma fita que poderia aproximar o escândalo do PT. A "Veja" desta semana relata uma reunião em que participaram Jefferson e os ministros José Dirceu e Aldo Rabelo. O presidente do PTB teria afirmado a eles que, se fosse réu, levaria junto Dirceu, o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e o secretário-geral do partido, Silvio Pereira. "Só faltou eles se ajoelharem aos meus pés", disse Jefferson. Apenas ele próprio, entre os presentes, teria interesse em vazar a conversa. Na mesma "Veja", o líder do governo no Congresso, Fernando Bezerra (PTB-RN) conta como funciona o esquema de distribuição de cargos - da qual Silvio Pereira seria uma peça-chave - e cita uma denúncia apócrifa de irregularidade em licitação, que supostamente envolve um petista. Bezerra não entrega o cargo, que é de confiança, porque diz, "candidamente", que não ofendeu o governo. Jefferson ameaça. O governo mantém Bezerra, tenta impedir a CPI e vê Pereira, o petista, confessar-se participante do esquema de distribuição de cargos, embora não faça parte da administração federal. É ininteligível a ação do governo, que se mostra acuado. Afinal, a crise política envolve, de um lado, um presidente e uma administração com altos índices de aprovação popular (embora tenham sofrido desgastes já registrados pela pesquisa Sensus/CNT divulgada ontem); e, de outro, um Legislativo com baixíssima credibilidade e pouca aprovação popular, e aliados que não estão acima de qualquer suspeita. No entanto, torna-se refém de um Congresso e de aliados de reputação discutível. Segundo levantamentos do próprio PT, o governo tucano, em seus oito anos de mandato, produziu quase meia centena e escândalos que, após turbulências de praxe, foram resolvidos e assimilados sem causar grandes transtornos ao governo. Escândalos no governo petista, e com esse tipo de resposta, são mais deletérios para a credibilidade das instituições democráticas. Lula e o PT acumularam capital político e chegaram ao poder com um discurso anticorrupção e consolidaram uma imagem de que eram "diferentes" dos políticos tradicionais. Sofrerão de forma mais aguda que os outros partidos os efeitos de contrariar essa bandeira - ou pela ação, ou pela omissão.