Título: Reforma agrária é quase uma impossibilidade
Autor: Fábio Chaddad e Eduardo Andrade
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2005, Opinião, p. A10

Bandeira histórica da esquerda não tem mais eficácia econômica

A questão da reforma agrária no Brasil é uma longa novela, secular e cheia de lances trágicos. Os últimos capítulos não sinalizam nenhuma perspectiva de se chegar a um desfecho desse enredo. A violência no campo continua fora de controle, como ficou claro no assassinato da missionária Dorothy Stang no Pará e as constantes invasões de terra realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), em muitas oportunidades desrespeitando os direitos de propriedade. Já o governo atual, mais uma vez, não deverá cumprir as promessas eleitorais de assentamento. Deixar de entender que a realização de uma reforma agrária é quase uma impossibilidade em nada contribui para se chegar ao fecho da novela. Para se entender o porquê dessa "impossibilidade", é necessário primeiro ter em mente que existe uma tendência, provavelmente inexorável, de uma redução contínua dos preços das commodities agrícolas e achatamento das margens na agricultura. Segundo dados da revista "The Economist", o item alimentação caiu 40% em termos reais desde a segunda guerra mundial. No mesmo período, o valor relativo da produção agrícola caiu de cerca de 50% para menos de 20% do valor de varejo dos alimentos. A explicação para esse fenômeno é simples. Do lado da oferta, vem ocorrendo um desenvolvimento tecnológico impressionante, com a utilização de técnicas produtivas cada vez mais sofisticadas no setor agrícola. Está ocorrendo uma verdadeira "industrialização da agricultura". Do lado da demanda, a população fica mais rica e passa a gastar uma fração cada vez menor da sua renda no item alimentação. Com a oferta crescendo mais do que a demanda, o resultado é a queda dos preços e transferência dos ganhos de produtividade na agricultura para o consumidor. A implicação da industrialização da agricultura é clara. Somente os produtores mais eficientes terão condições de sobreviver neste ambiente, sendo o mais provável que ocorra uma queda do número de produtores no mundo. A agricultura moderna discute, por exemplo, o uso de sementes geneticamente modificadas e mapas digitais, gerados por satélites com sistema de posicionamento global para monitorar a produção por hectare. Além disso, o consumidor de alimentos está cada vez mais exigente, bem como as empresas de processamento e distribuição que servem este consumidor, dificultando o acesso a mercados de produtores que não conseguem acompanhar as novas exigências do mercado. É difícil pensar que os potenciais beneficiários da reforma agrária são capacitados para utilizar tecnologias cada vez mais avançadas e aptos para entender estas novas exigências do mercado, como técnicas de comercialização e até mesmo o uso de um simples computador. Adicionalmente, essa concentração da produção em poucos produtores se intensificará também pelas crescentes economias de escala associados à produção de várias culturas. Nos EUA, por exemplo, 200 mil produtores agrícolas - o equivalente a menos de 10% do total - são responsáveis por mais de 70% da produção. Nos países desenvolvidos, cerca de 5% da população trabalha nas propriedades rurais, enquanto no Brasil este número está em torno de 25%. Claro, como o país tem vantagem comparativa na produção de produtos agrícolas é razoável que esta parcela seja maior no Brasil. Agora, querer aumentar de forma artificial, através de uma reforma agrária, o número de produtores rurais no Brasil provavelmente é remar contra a maré! Francamente, em termos de eficiência econômica, não faz sentido a realização da reforma agrária. Ela pode ser entendida, então, como uma política de transferência de renda. Indivíduos recebem terras do governo e plantam para a sua própria subsistência, a chamada agricultura familiar. Mas dificilmente essa é a forma mais eficaz de transferir renda. Vejamos o porquê.

Com o avanço da industrialização da agricultura, apenas os produtores mais eficientes sobreviverão

As terras mais férteis e mais próximas dos mercados consumidores, portanto, as mais cobiçadas e em geral já utilizadas de forma produtiva, são muito caras para o governo desapropriar. Adicionalmente, a expansão do cinturão agrícola no Brasil, para regiões relativamente menos férteis, elevou substancialmente o preço da terra. Não é surpreendente que os governos brasileiros tenham cada vez mais dificuldades em obter recursos para financiar a reforma agrária. Isto ocorre mesmo com o governo Lula, tradicionalmente aliado com os movimentos dos sem-terra. Para 2005, o próprio Ministro do Desenvolvimento Agrário admite que dificilmente a previsão de assentar 115 mil famílias será cumprida, devido a cortes no orçamento. Especialistas estimam que seria necessário, hoje, algo em torno de R$ 20 bilhões de reais para assentar 400 mil famílias, incluindo aí a obtenção de terras e o oferecimento de infra-estrutura básica aos beneficiários do programa. Ou seja, este montante equivaleria a uma bolsa-família de R$ 70 paga para cada família beneficiada do programa de reforma agrária durante quase 60 anos! Utilizar tal montante de recursos na reforma agrária exigiria do governo reduzir no mesmo montante os seus atuais gastos em outras atividades, caso não se queira aumentar ainda mais os impostos. Difícil imaginar que gastos o governo conseguiria comprimir para esse fim. No entanto, mesmo que conseguisse realizar essa mágica, essa seria uma política de transferência extremamente onerosa. Provavelmente seria mais barato para o governo simplesmente transferir uma determinada renda para as famílias e despender o restante dos recursos com treinamento e recapacitação profissional e educação básica, de forma a qualificá-los e torná-los aptos a trabalhar em outra atividade produtiva. Principalmente quando se tem em mente que, tão logo possível e até mesmo à revelia da legislação, os beneficiários da reforma agrária tendem a vender ou arrendar as suas terras para agricultores mais produtivos. Afinal, não há espaço no mercado para "produtores amadores". O governo Lula abandonou bandeiras históricas importantes como aquela do "Abaixo o FMI" e do "Fim do Pagamento da Dívida Externa". O momento talvez exija o abandono de outra, aquela da "Reforma Agrária".