Título: Não ao retrocesso industrial
Autor: Luciano Coutinho
Fonte: Valor Econômico, 03/06/2005, Opinião, p. A11

Um balanço da década de 90 remete à conclusão de que, apesar do ciclo de investimentos que se seguiu à estabilização (entre 1995 e 1997), a indústria brasileira perdeu substância em várias cadeias setoriais relevantes (em termos de valor agregado) e retrocedeu em matéria de capacitação tecnológica e no que tange ao desenvolvimento de marcas nacionais. O persistente diferencial adverso de juros, acarretando custos de capital muito mais elevados para as empresas de capital nacional, resultou em um processo rápido de desnacionalização, debilitando significativamente a presença de empresas nacionais na maior parte das cadeias industriais, especialmente naquelas de maior complexidade tecnológica. Assim, dadas as suas características macroeconômicas (câmbio sobrevalorizado, juros altíssimos), a década de 90 pouco agregou à competitividade da indústria brasileira em termos de tecnologia e de marcas próprias. Embora o regime de flutuação da taxa de câmbio, adotado depois da crise de 1999 tenha sido benigno, o desempenho da indústria a partir do ano 2000 continuou insatisfatório. As elevações recorrentes da taxa de juros, a inesperada eclosão da crise de energia em 2001, a combinação de um crunch de crédito externo com a incerteza sucessória em 2002 e o financiamento caro e restrito resultaram em taxas medíocres de crescimento industrial. A retração do mercado interno comprometeu o desempenho dos setores mais dependentes da evolução da massa de salários e do crédito. A partir de 2003, sob o impacto da desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002, de novos acordos comerciais, de esforços de promoção comercial e, principalmente, do forte crescimento da demanda mundial com preços favoráveis, as exportações industriais voltaram a crescer aceleradamente. O crescimento das vendas externas foi chave para a reativação da indústria. Este processo aprofundou-se em 2004, com a redução da taxa de juros (até setembro), ampliação do crédito e expansão continuada da demanda internacional. A despeito da retórica oficial de que o desempenho recente será o início de um ciclo duradouro de expansão e de renovação industrial, começa a ficar evidente a fragilidade da economia face ao choque adverso dos juros estratosféricos e do câmbio sobrevalorizado vigentes nesses primeiros meses de 2005. Este choque ameaça não apenas a continuidade da expansão no curto prazo, como amesquinha a realização de investimentos imprescindíveis para sustentar a competitividade da indústria brasileira no longo prazo. Empresas manufatureiras importantes começam a cancelar planos de exportação e de inversão. Chegamos ao limite: esse retrocesso precisa ser evitado!

Política atual queimará chance de superar restrições financeiras históricas que comprometem desempenho econômico e social do Brasil

É urgente restaurar condições macroeconômicas (de juros e câmbio) indutoras de um modelo de desenvolvimento que, além de aumentar a resistência da economia à instabilidade das variáveis domésticas e internacionais, crie condições firmes de avanço competitivo e tecnológico. Nessa tarefa, a indústria não pode deixar de ter um papel de relevo. A indústria é o motor das inovações que estimulam o desenvolvimento do comércio, dos serviços e da transmissão do progresso tecnológico para o conjunto do sistema produtivo. Ademais a indústria pode contribuir reforçando a geração de um superávit comercial alto para manter um robusto colchão de reservas, garantidor do crescimento da economia. Conforme enunciado na Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), este desafio não poderá ser cumprido a contento sem que a indústria avance qualitativamente, desenvolvendo e incorporando novas tecnologias. O esforço de agregação de valor - em bases eficientes, observando os benchmarks mundiais - especialmente nas cadeias de maior sofisticação tecnológica (que são justamente aquelas que exibem maior potencial de crescimento) implica desenvolver no país a capacidade de produzir componentes eletrônicos, fármacos e softwares de alta complexidade que são, corretamente, opções estratégicas da PITCE. Sem isto não será possível conquistar espaços nos mercados domésticos e externos de telecomunicações, de eletrônica de consumo, de medicamentos, de bens de capital e outros. Analogamente, sem que se processem substanciais avanços qualitativos na capacitação tecnológica de setores como automobilístico, autopeças, petroquímica, química de especialidades, componentes para os diversos setores da indústria mecânica e outros, não será viável manter de forma duradoura o dinamismo da produção e do investimento nessas importantes cadeias setoriais. Com uma taxa de câmbio competitiva, setores da indústria de bens de consumo não-durável (têxtil, confecções, calçados, embalagens, alimentos industrializados) poderão melhorar extraordinariamente os seus desempenhos de exportação e, para isto, precisarão avançar muito em matéria de desenvolvimento de produtos, design e qualidade, com preços competitivos. Os grandes complexos competitivos de commodities e pseudo-commodities (siderurgia, processamento de minérios ferrosos e não-ferrosos, celulose e papel, suco de laranja, soja-derivados-avicultura) poderiam enobrecer e agregar mais valor aos seus produtos, o que certamente requer avanços na prática de P&D. Após o ajuste extraordinariamente bem sucedido do balanço de pagamentos nos três últimos anos, ajuste esse espontâneo e provocado por razões exógenas (mas, não obstante, mitigador da vulnerabilidade externa da economia) o governo Lula se defronta com uma opção: ou bem formula uma estratégia consistente de desenvolvimento competitivo que aproveite o impulso favorável do cenário mundial para cimentar a sustentação do crescimento (em ritmo superior a 5% ao ano) ou a política míope de juro alto e câmbio super apreciado queimará mais uma oportunidade histórica de escapar das restrições financeiras e tecnológicas que comprometeram o desempenho econômico e social do Brasil nos últimos 25 anos. Mais que míope, será imperdoável, repetir um erro crasso. A inflação esperada já está caindo: tarda a hora de reverter a insensata política atual de juros-câmbio.