Título: Chávez 'impressiona' com missões sociais
Autor: The Economist
Fonte: Valor Econômico, 03/06/2005, Especial, p. A12

Venezuela Apoio ao governo dispara para 70%; para a oposição, é uma ditadura com face legal e democrática

Para ter uma idéia do que Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, espera que será o futuro de seu país, vá até Catia, um bairro empoeirado na zona leste de Caracas. Lá, um depósito de distribuição de gasolina desativado foi transformado no que Chávez chama de "núcleo de desenvolvimento endógeno". Para aqueles que não são versados no vocabulário da "revolução Bolivariana" de Chávez, isso significa uma série de cooperativas de trabalhadores e programas sociais, todos bancados pela Petróleos de Venezuela (PDVSA), o monopólio estatal do petróleo. Três novos prédios foram erguidos ao redor de uma área central de confluência. Um deles hospeda uma bem equipada clínica de saúde. Num segundo, o governo instalou um grande número de máquinas de costura. Depois de oito meses de treinamento, 180 mulheres da cooperativa Venezuela Avança começaram a trabalhar. O primeiro contrato foi para a fabricação de camisetas e bonés para serem usados por diplomatas venezuelanos no Dia do Trabalho. A terceira construção é uma cooperativa para a produção de sapatos. Na colina acima, uma outra cooperativa, de jardineiros urbanos, plantou milho. Cerca de 1.200 pessoas trabalham no núcleo, que custou US$ 6,6 milhões. Uma planejada segunda fase, ao preço de US$ 8 milhões, vai incluir uma escola "Bolivariana", um centro de diagnósticos e uma enfermaria. Do outro lado da rodovia fica um pequeno supermercado, também novo e bem limpo. Ele é administrado pela Mercal, uma estatal criada por Chávez para fornecer alimentos baratos para os pobres. A Mercal opera principalmente com linhas comerciais, mas alguns de seus preços são subsidiados, ao custo de US$ 25 milhões por mês para o governo. Bem próximo está um centro de programas educacionais estabelecido por Chávez. Um dos programas, oficialmente concluído, ensinou adultos analfabetos a ler e escrever. Dois outros permitem às pessoas concluírem o ensino primário ou secundário, e um quarto programa está fornecendo cursos supletivos - e a promessa de um lugar em um sistema universitário ampliado - para 286 mil jovens que não conseguiram concluir o segundo grau. No 23 de Janeiro, um vasto complexo residencial, Ángel Sosa realiza uma cirurgia por dia em uma escola primária. Ele é um dos 16 mil médicos emprestados por Fidel Castro, o presidente comunista de Cuba, para Chávez em troca de petróleo. De manhã, Sosa prescreve uma série de medicamentos cubanos, de graça, para os pacientes. À tarde, visita casas. Muitos venezuelanos estão impressionados com essas "missões", que é como são chamados os programas sociais. Mas a oposição venezuelana vê os médicos e treinadores esportivos cubanos como quadros políticos de disseminação do comunismo. Chávez, um parrudo ex-oficial do Exército, deve sua sobrevivência no poder em grande parte às "missões" - e ao dinheiro do petróleo que as têm tornado possíveis. Desde 1992, quando ele tentou um fracassado golpe militar, muitos venezuelanos pobres o vêem como um ídolo num país empobrecido. Votaram em Chávez para presidente pela primeira vez em 1998, o apoiaram quando reescreveu a Constituição e votaram nele sob a nova Carta em 2000. Para muitos outros venezuelanos, sobretudo da classe média, que vem encolhendo rapidamente, Chávez é uma figura mais sinistra. Eles o vêem como uma pessoa que está substituindo a democracia por uma autocracia, e uma economia mista por algo mais próximo do comunismo. Os oponentes de Chávez, que incluem partidos da esquerda e da direita, assim como associações comerciais, empresários e ONGs, vêm fazendo o que podem para se livrar dele, de maneiras lícitas ou não. Em 2002, através de um golpe, eles o tiraram do poder por pouco tempo. Mais tarde, organizaram uma greve transformada em locaute que paralisou a economia do país por dois meses. Em agosto passado, eles perderam um plebiscito sobre a continuidade do governo de Chávez. Alegaram que houve fraude, mas não provaram. Mas certamente o governo mobilizou de maneira injusta todos os recursos do Estado. Antes do pleito, ele registrou cerca de 2 milhões de novos eleitores. E organizou as "missões". Os defensores do presidente agora administram 21 dos 23 Estados da Venezuela e ganharam Caracas. Chávez goza de poder irrestrito, enquanto a oposição praticamente desapareceu como força organizada. O nível de popularidade do presidente nas pesquisas disparou para 70%. Desde o plebiscito, Chávez começou a encaminhar a revolução Bolivariana, que recebeu o nome em homenagem ao herói da independência da América do Sul, Simon Bolívar, para uma direção mais radical. "Estamos começando a construir nosso próprio modelo socialista", disse. Agora, Chávez exerce um controle completo sobre as instituições do Estado. Em dezembro, ele amarrou o Poder Judiciário, quando a maioria pró-governo na Assembléia Nacional nomeou 12 juízes extras para a Suprema Corte e substituiu os desleais. A Justiça Eleitoral também tem uma maioria chavista (de quatro para um). Desgostosos, alguns defensores da oposição boicotaram as eleições locais, mudando o equilíbrio em certos Estados. "É uma ditadura com uma face legal e democrática", diz Pedro Palma, um empresário e professor de economia. Não é assim que os partidários de Chávez vêem a coisa. "Temos mais democracia do que antes", afirma Andrés Izarra, ministro da Informação, apontando para os plebiscitos e a participação da comunidade nos orçamentos. Certamente a Venezuela ainda tem muitas das aparências externas de uma democracia. A imprensa é ativa e diversificada, por exemplo. Mas, pouco a pouco, liberdades estão sendo ceifadas. Uma nova lei de imprensa está levando a uma certa auto-censura nas rádios de TVs de oposição, segundo Teodoro Petkoff, editor de um jornal. Alguns venezuelanos temem que uma nova força de reservistas do Exército, que supostamente seria de 1,5 milhão de soldados, também venha a ser usada para intimidar a oposição. A tarefa ostensiva da reserva é defender a revolução contra uma invasão dos EUA. Uma proposta de compra de 100 mil fuzis Kalashnikov é necessária, segundo membros do governo venezuelano, para substituir rifles mais antigos - e não para suprir a guerrilha na Colômbia, como acredita Washington.

Muitos venezuelanos pobres vêem Chávez como um ídolo; para a classe média, ele é uma figura mais sinistra

O governo também aumentou a intervenção na economia. Desde o plebiscito, Chávez criou uma nova companhia aérea estatal, uma telefônica, uma de cimento e um canal de TV noticioso, para espalhar sua mensagem pela América Latina. Mas o principal esforço econômico do governo são as cooperativas. As empresas privadas enfrentam mais restrições. Há muito tempo o governo impôs controles ao câmbio e preços das matérias-primas. Os bancos são obrigados a conceder 29% de seus empréstimos totais para a agricultura e a compra ou construção de residências, a taxas subsidiadas. Com a inflação correndo a 16% ao ano, o banco central decretou um teto sobre os juros cobrados pelos bancos para empréstimos, de 28%. No campo, Chávez decretou uma barulhenta "guerra aos latifúndios". Até agora, apenas duas grandes propriedades, uma delas pertencente ao Vestey Group, do Reino Unido, foram parcialmente desapropriadas. Chávez diz que apenas os fazendeiros com terras improdutivas ou títulos de posse irregulares têm o que temer. Mas alguns venezuelanos afirmam que o governo está agindo ilegalmente. Eles temem infrações maiores aos direitos de propriedade. O Instituto Nacional de Terras do governo ordenou a centenas de empresas industriais de Valência, a oeste de Caracas, que apresentem títulos de posse que retrocedem a 1848. Mesmo assim, a economia teve um forte crescimento no ano passado, depois de se recuperar da greve. O crescimento está sendo alimentado pelos altos preços do petróleo, que vêm se transformando em investimentos públicos maciços. Sob Chávez, esses gastos do governo cresceram de 19% do PIB em 1999 para 31% no ano passado. Muitos empresários "estão fazendo dinheiro como nunca", diz o consultor Roberto Bottome. Mas, fora da indústria do petróleo, há poucos investimentos novos. "Todos estão assustados", diz o banqueiro Óscar García Mendoza. Mais do que nunca, o que sustenta o país é o petróleo. Ano passado, as exportações de petróleo geraram US$ 29 bilhões (85% das exportações totais), em comparação a US$ 22 bilhões em 2001. No passado, quando os preços do petróleo estavam altos, o governo guardava parte dos recursos que conseguia para gastar quando os preços caíssem. Mas Chávez acabou com isso. Ele está gastando como se não houvesse amanhã. No ano passado, o petróleo proporcionou 52% das receitas do governo - cerca de US$ 25 bilhões. Sobre isso, a PDVSA forneceu outros US$ 3,7 bilhões, fora do balanço, para programas sociais. Mesmo assim, o governo registrou no ano passado um déficit fiscal de 2,8% do PIB. Sob Chávez, a dívida pública aumentou de 29% do PIB para 39% no ano passado. Graças aos altos preços, a receita do petróleo está aumentando mesmo com a produção em queda. Oficialmente, a Venezuela está produzindo sua cota na OPEP de 3,1 milhões de barris/dia. Mas fontes do setor afirmam que a produção está na verdade em 2,7 milhões de barris/dia. Desses, as multinacionais respondem por 1,2 milhão de barris/dia (número que em 1998 era de 300 mil). A produção da PDVSA caiu pela metade ao longo desse período, para 1,5 milhão de barris/dia. E poderá cair ainda mais. Depois da greve, Chávez demitiu 18 mil dos 32 mil funcionários da PDVSA, substituindo uns por forças leais. Membros do governo argumentam, com razão, que a empresa havia se transformado em um Estado todo-poderoso dentro do Estado. Mas oponentes respondem afirmando que uma empresa eficiente, que operava sob diretrizes técnicas e não políticas, foi destruída. O governo tem um plano ambicioso de ampliar a produção de petróleo para 5 milhões de barris/dia até 2009, principalmente levando firmas estrangeiras estatais para o país. Enquanto isso, está tentando extrair o máximo possível de receita. Em abril, o governo deu aos sócios multinacionais - que incluem a ChevronTexaco, a Petrobras, a BP e a Royal Dutch/Shell - seis meses para que eles assinem novos contratos. Esses transformarão suas operações em joint-ventures nas quais o governo terá participação de 51%, além de aumentar o imposto que elas pagam. A farra de gastos do governo significa que a economia está "extraordinariamente vulnerável" a qualquer queda nos preços do petróleo ou na produção, segundo afirma o economista Orlando Ochoa. Mesmo assim, Chávez tem cartas na manga. Ele parece inclinado a vender a Citgo, uma grande refinaria de petróleo e revendedora de gasolina nos EUA e subsidiária da PDVSA. E funcionários do governo vêm propondo que ele deveria poder gastar o "excesso" de reservas do Banco Central. Cedo ou tarde, a farra dos gastos poderá incorrer em uma ressaca monumental. A Venezuela está gastando parte do seu capital. Se e quando as receitas com o petróleo caírem, a economia vai mergulhar em um inferno de recessão e inflação. Mas é altamente improvável que isso aconteça antes das eleições presidenciais de dezembro de 2006, com as quais Chávez certamente deverá ganhar mais um mandato de seis anos. Mas qual é exatamente a natureza e o destino da revolução de Chávez? E como um país que já foi o mais próspero da América Latina, com uma democracia aparentemente estável, foi controlado por um regime desses?

Chávez diz que o objetivo de longo prazo da revolução Bolivariana é 'transcender o modelo capitalista'

De 1913 a 1950, a economia da Venezuela cresceu mais do que qualquer outra do mundo. A derrubada de uma ditadura em 1958 anunciou o que muitos passaram a ver como a democracia mais sólida da América Latina, com uma classe média em crescimento. Ela foi baseada na divisão do poder entre dois partidos, um social democrata e um democrata cristão. Mas o regime não era tão sólido. A partir de seu auge, em meados da década de 70, a relação de receita de petróleo sobre a população se moveu contra a Venezuela, em parte por causa da chegada de muitos imigrantes de países vizinhos mais pobres. A solução óbvia foi usar o dinheiro do petróleo para diversificar a economia. Nos anos 70, Carlos Andrés Pérez, um social-democrata, nacionalizou a indústria do petróleo e usou suas receitas para criar novas indústrias pesadas administradas pelo Estado. Com os preços do petróleo caindo e a dívida aumentando, o prolongado boom econômico da Venezuela chegou a um final doloroso. Na "Sexta-feira Negra", em fevereiro de 1983, o bolívar foi desvalorizado. Desde então, a Venezuela fica cada vez mais pobre. A pobreza expôs a fraqueza da democracia venezuelana. No fim de 1993 - quando Andrés Velásquez, um líder sindical de esquerda que poderia ter se tornado um reformador democrata, foi derrotado por uma margem estreita em uma eleição marcada por fraudes -, a maioria dos venezuelanos concordavam com Chávez de que o sistema (a "quarta república") estava desacreditado. Que tal, então, a "quinta república" de Chávez? Apesar de todas as suas falhas, os governos da quarta república eram mais legítimos que o de Chávez. Pelo menos até o plebiscito, o presidente agia mais de acordo com o modelo clássico do caudilho populista latino. Esses populistas concediam benefícios à classe média e aos trabalhadores urbanos, mobilizando-os contra oponentes simbólicos ou reais - normalmente os oligarcas donos de terras e seus apoiadores estrangeiros, como os EUA. Eles alegavam ser revolucionários, mas queriam rearranjar o capitalismo, em vez de destruí-lo. Cumpriam suas promessas sociais tomando dinheiro emprestado ou imprimindo dinheiro, e assim deixando seus países mais pobres. No caso da Venezuela, desde que Chávez assumiu, a pobreza certamente aumentou: em 1999, 54% dos lares eram pobres, número que subiu para 60% no ano passado, segundo dados oficiais. Mas grande parte da agenda histórica do populismo, como a reforma agrária e a nacionalização do petróleo, já havia sido cumprida pelos governos da quarta república. Portanto, pelo menos até recentemente, Chávez gritou contra a "oligarquia" mas mudou pouca coisa. Desde o plebiscito, porém, o "processo", que é como seus defensores o chamam, parece estar caminhando para um novo estágio. Chávez agora diz que o objetivo é o "socialismo do século XXI". Seu significado não é claro. Em uma reunião com ministros em novembro, Chávez disse que o objetivo de longo prazo da revolução é "transcender o modelo capitalista". A alternativa, disse ele, não é o comunismo, e sim "uma economia humanista, social e igualitária". Da maneira como está evoluindo, em vez do século XXI, o "processo" se parece com o governo militar de esquerda que governou o Peru na década de 70 sob o comando do general Juan Velasco, um herói de Chávez. Velasco expandiu muito o papel do Estado e formou milhares de cooperativas. Essa experiência entrou em colapso sob o peso de dívidas e estagnação inflacionária. As forças armadas certamente são um dos esteios do chavismo. Alfredo Keller, um consultor político, avalia que mais de 500 empregos do primeiro escalão do governo, incluindo nove governos estaduais, são ocupados por militares. A outra escora é uma variedade de pequenos partidos de extrema esquerda. Há uma fricção constante entre e dentro dessas duas escoras, e nenhum comando revolucionário geral. "A novidade do chavismo", diz o analista Alberto Garrido, "é que ele representa as classes inferiores. Essa é a revolução dos excluídos. Mas eles são invertebrados. Como os organizar?" Não é coincidência o fato de que a instituição símbolo da revolução Bolivariana não é um partido, e sim um programa de TV. Todos os domingos, por cerca de quatro horas, Chávez comanda o "Aló Presidente". É a revolução na forma de talk-show, e este é um papel para o qual ele não tem substituto. Ao contrário de Velasco ou Fidel, Chávez assumiu o poder via eleições. Isso dá ao seu regime uma ambivalência que, segundo o editor Petkoff, é sua marca registrada. "Ele tem um pé na democracia, forçado pela cultura democrática e pela tradição do país, mas o outro pé está no autoritarismo e na autocracia." A Venezuela precisa decidir qual pé amputar.