Título: O discurso, a realidade e o vazio do poder
Autor: Eduardo Belo
Fonte: Valor Econômico, 03/06/2005, EU & Fim de Semana, p. 14 a 17

Capa Governos europeus estão sendo derrotados em questões essenciais para seus projetos de poder. No Brasil, Lula e o PT correm o risco de entrar em processo semelhante, vítimas de uma retórica que não se sustenta na prática

O abismo entre o discurso de campanha e a prática política que derrotou os governos da França e da Alemanha nas duas últimas semanas já pode ter chegado ao Brasil. Embora o país ainda esteja longe de aferir o efeito nas urnas do primeiro mandato do PT no Executivo federal, fica claro que o desgaste do governo Lula deve um largo tributo a sua práxis muito à direita da imagem tradicional do partido - e, dizem os mais cruéis, à direita até da direita. Convidados a refletir sobre as semelhanças entre a corrosão da base de apoio do governo brasileiro e as derrotas eleitorais recentes do presidente Jacques Chirac na França e do premiê Gerard Schröder na Alemanha, três cientistas políticos ouvidos pelo Valor chegaram, praticamente, à mesma conclusão: apesar de guardar características distintas, as derrotas de Schröder (nas eleições regionais) e de Chirac (no referendo à Constituição européia) nasceram de uma mistura da divergência entre discurso e prática com inépcia política - sem falar na xenofobia explícita, na França. No caso europeu, há uma série de questões para as quais a elite política local não consegue oferecer respostas. É o que ocorre, por exemplo, com o descontentamento com políticas econômicas que já não conseguem manter o bem-estar social da nata do continente e da ameaça que representa a mão-de-obra barata - e relativamente bem qualificada - dos novos integrantes da União Européia (UE), sobretudo dos países da Europa do Leste. Ou, ainda, a intolerância religiosa, que leva muita gente a impingir aos turcos, candidatos a integrar o bloco regional, a pecha de párias do continente. Foto: AP

Depois da vitória do "não" na França, 61,6% dos holandeses que votaram na quarta-feira no país reprovaram a Constituição européia No Brasil, o governo deixa de dar respostas a toda a sociedade. A começar dentro de casa, pelo seu próprio partido. A pretensa pluralidade do PT - tese violada em casos como, por exemplo, a da expulsão dos "radicais", em dezembro de 2003 - é um dos maiores desafios à governabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foto: AP

Javier Solana, chefe de política externa da União Européia, durante entrevista coletiva, em Bruxelas, após o referendo francês, no domingo passado Mesmo com tantas diferenças, há paralelos entre os casos europeu e brasileiro, aponta o sociólogo Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os mais destacados são os erros de avaliação política, diz. Na França, Chirac e o ex-primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin cometeram um engano ao propor o referendo. A questão poderia ter sido resolvida no parlamento francês, mas, com base em pesquisas de um ano atrás, o governo apostou na vitória. Acabou vítima do voto de protesto dos partidos de esquerda, que consideram a Carta da UE "neoliberal demais", e dos xenófobos, que querem ver a Turquia longe da UE. Na Alemanha, Schröder perdeu o rumo na mesma medida em que seus patrícios do Norte começaram a se decepcionar com políticas econômicas e sociais sem a mesma consistência de antes. No Brasil, os equívocos são de outra natureza. Mais exatamente, de dissociação ente a velha imagem do PT e a dura realidade do dia-a-dia da administração. "Apesar de ter de agir realisticamente no plano da gestão econômica, não era necessário que o governo Lula se expusesse à série de erros de atuação política que vem cometendo desde o episódio Waldomiro Diniz", afirma Reis. Foto: Alan Marques/Folha Imagem

Na casa do deputado Roberto Jefferson (à esq.), em outubro de 2004, Lula e José Dirceu fortaleceram a aliança com o PTB (à direita, o ministro Walfrido Mares Guia, do Turismo) Para o sociólogo, ali começou uma sucessão de equívocos "que colocaram o governo numa posição defensiva" e desencadearam uma série de episódios comprometedores para sua imagem pública. Cita, por exemplo, o comportamento "autoritário" do governo na tentativa de expulsão do jornalista americano Larry Rother, por afirmar que o presidente Lula bebe enquanto dirige o país, e na tumultuada eleição do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. Essa seqüência de "más notícias" culminou com o pedido de abertura da CPI dos Correios e a resistência do governo em admitir sua instalação, o que vem criando "turbulências de efeitos imprevisíveis". O PT se deixou atingir em seu maior capital, que era a imagem de partido ético, comprometido com a transparência e com os anseios da população, argumenta José Augusto Guilhon Albuquerque, professor aposentado da USP e coordenador do curso de relações internacionais da Universidade São Marcos. Para ele, o governo Lula foi ferido gravemente pela questão da corrupção porque foi eleito com a aura da ética. Agremiações e candidatos com perfil mais realizador não teriam enfrentado tantos problemas com episódios eventuais de denúncia de corrupção, por não terem esse suposto compromisso histórico com a moralidade pública. Em resumo, por se mostrar incoerente, o PT foi presa de sua própria prática. Na avaliação de Renato Lessa, pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), o desgaste da base do governo no Congresso guarda semelhanças com a erosão da base parlamentar do presidente Chirac. Mas falta ao Brasil a experiência de uma eleição para demonstrar até que ponto esse desgaste corrompeu o eleitorado disposto a apoiar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu partido. "Aqui, o eleitorado não foi chamado a se manifestar. E seus representantes, quando falam, não falam em nome do eleitorado. Falam em nome de si próprios, na sua barganha com o governo", afirma Lessa. Segundo ele, "o próprio governo esquece que tem 50 milhões de votos de brasileiros e fica obcecado nessa tentativa de capturar e controlar o Congresso". Executivo e Legislativo agem como se o país não tivesse eleitores. Deve-se notar que, além do desgaste natural de um governo com dois anos e meio de mandato, desde o caso Waldomiro os dirigentes do PT carregam nos ombros a responsabilidade de oferecer à sociedade, sistematicamente, motivos para achar que o partido não era exatamente o que pregava. "No caso brasileiro, o que acontece é uma certa desarticulação e descontrole do governo em relação ao que seria sua base parlamentar", argumenta Lessa. Para ele, esse processo tem origem "na desestruturação da relação do governo com seu partido". O cientista político entende que falta ao PT uma identidade que lhe dê a disciplina parlamentar necessária à constatação de que, afinal, o PT é governo. O mais grave, na visão de Lessa, é que o governo adota práticas incapazes de agregar um único voto - muito ao contrário, todas elas tendem a decepcionar o eleitorado. "O superávit de 7,6% do PIB anunciado esta semana é uma coisa terrível", afirma. "Mesmo a parte do orçamento que está empenhada não está paga. O que está pago é pífio. É muito fácil fazer superávit desse jeito." Além disso, o exercício da governabilidade está comprometido. "Por não gastar, o governo não governa. A única coisa que faz é um controle dos indicadores gerais, a coisa do juro, produzir superávit, e essa guerrilha com o Congresso, para obter mais base. Não se sabe direito para quê, porque, nessa barganha toda, já não se sabe quem tem projetos para o país." A crise de governabilidade decorre também da ruptura da imagem do PT como dono de um "feeling social" mais apurado que o dos demais partidos, diz Guilhon Albuquerque. Depois viu-se que o governo "não tinha nem programa, nem projeto, nem experiência nisso", apesar das vitórias em eleições anteriores para os Executivos estaduais e municipais. Reis entende que o desmoronamento do que se imaginou fosse o "projeto social" do PT se deu em virtude do "choque de realidade" que a administração pública deu ao governo Lula - principalmente no que se refere à rígida gestão da economia sob um receituário capaz de arrancar elogios dos mais ortodoxos do mundo ortodoxo. O "choque de realidade" teria mostrado ao governo a necessidade de priorizar a administração econômica em detrimento de um modelo social mais viçoso. Mas esse era um caminho a seguir sem muita escolha, argumenta o professor emérito da UFMG. O que deixou o poder distante demais do PT eleito foi o esquecimento de suas origens. O que torna o processo mais complicado é que o PT se comporta de maneira "despótica", afirma Guilhon Albuquerque. Para o cientista político, é como se os demais partidos lhe "devessem serviço". É uma visão centrista, que não combina nem um pouco com a heterogênea - e, por isso mesmo, esfacelada - base de sustentação parlamentar do governo. "É uma base muito heterogênea, muito mais que a do governo anterior", afirma. O "modus operandi" petista, pelo menos em escala federal, rendeu ao partido - e, por conseguinte, ao governo - uma insatisfação generalizada, argumenta Guilhon Albuquerque. "O governo perdeu muito da sua credibilidade em vários aspectos, como a questão programática, de atender as demandas, de ter um compromisso sério com as bases eleitorais." Para ele, o país vive um "impasse legislativo", em que o governo "perdeu a capacidade de legislar e de levar adiante as reformas, quaisquer que sejam". Apesar do desgaste, Guilhon Albuquerque entende que os efeitos sobre as próximas eleições ainda são uma incógnita. "Uma incógnita, se o governo conseguir chegar às eleições sem grandes crises. Mas isso é secundário. Ele vai conseguir chegar?", pergunta. "O partido está dividido e assim vai chegar ao eleitorado", conclui. Algum desgaste eleitoral vai haver. Difícil, neste momento, é medir sua real dimensão. "É muito cedo para dizer que a reeleição do presidente será inviável", afirma Lessa. "Mas não será tão fácil quanto foi a eleição. O sucesso do presidente, na reeleição, vai depender de quanto ele vai sacrificar seu próprio partido." No caso do Executivo, a julgar pela pesquisa CNT/Sensus divulgada nesta semana, o prejuízo, por enquanto, nem foi tão grande assim. A aprovação do governo caiu para 57%, três pontos abaixo do levantamento anterior. Para Lessa, no Congresso, portador de uma imagem desde sempre muito ruim no Brasil, a situação tende a piorar. A tentativa de criar uma CPI para apurar as denúncias de irregularidade nos Correios configura a estratégia perfeita para jogar o foco sobre o Executivo. Para o pesquisador do Iuperj, os problemas de ordem política decorrem sobretudo do fato de Planalto e Congresso estarem "completamente envolvidos numa barganha que não é visível para a sociedade". E isso, desde que o país reingressou na democracia, em 1985. "Algum comprometimento existe", concorda Reis. Mas ressalva que "o jogo eleitoral se decide junto ao eleitorado em geral, principalmente as camadas populares", entre as quais a erosão na imagem do presidente pode ainda nem ter chegado. "Mas a tendência é para que chegue."