Título: Relação de sacrifício
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 07/06/2005, Brasil, p. A2

Ao longo das últimas décadas os economistas têm desenvolvido trabalhos teóricos e pesquisas empíricas que mostram o alto custo da inflação, mesmo quando ela é de apenas um dígito. À medida que se refinou a aproximação teórica do fenômeno, a análise empírica mostrou que esse custo é (ou pelo menos pode ser) maior do que se supunha no passado recente. Por outro lado, depois de um namoro com as "expectativas racionais" (que sugeria a possibilidade de liquidar a inflação "sem custo"), hoje é aceito como axioma que reduzir inflação sem custo é impossível. Como se mede esse "custo"? Pela passageira redução do PIB e do emprego durante o processo de redução da taxa de inflação. A medida construída para medir o fenômeno é a "relação de sacrifício": relação entre a soma dos desvios do PIB com relação ao produto potencial durante o processo de desinflação, dividida pela diferença da taxa de inflação no início e no fim do processo. Trata-se do montante de PIB transitoriamente "perdido" durante o período em resposta a cada 1% de redução da taxa de inflação. A "relação de sacrifício" é muito variável. Ela depende da qualidade da política monetária, das condições iniciais na partida e, principalmente, da "inércia" das "expectativas inflacionárias". Essas costumam ser muito mais "adaptativas" (seguem a "história" da tendência inflacionária muito mais do que a famosa "credibilidade" do Banco Central) e tendem a responder desconfiadamente às exortações patrióticas e às ameaças da política monetária (mesmo dos bancos centrais autônomos). Escorneado freqüentemente pelo governo, que é o principal agente inflacionário, o setor privado responde como São Tomé: espera defensivamente até ver o resultado das promessas da política antiinflacionária. Se a inflação é de excesso de demanda, o setor privado, corretamente, espera que o programa não se restrinja apenas à elevação da taxa de juro real. Quer sinais visíveis da disposição do governo de cortar excessos de gastos. Num país com déficits nominais e altíssima relação dívida líquida/PIB como o Brasil, o setor privado intui que só política de juros não será bem-sucedida, porque: 1) o corte da demanda privada (poupando a demanda pública) reduzirá a produtividade média da economia; 2) a deterioração das contas públicas não será sustentável por muito tempo; e 3) num regime de câmbio flutuante, a elevação da taxa de juros real acima do nível internacional acabará valorizando a moeda nacional, com todos os seus malefícios, o que também não é sustentável por muito tempo. É isso que explica a resistência das "expectativas inflacionárias" a ajustar-se mais rapidamente, aumentando, assim, a "relação de sacrifício" do programa antiinflacionário.

Reduzir inflação sem custo é impossível

Todas essas considerações mostram que um programa de redução da inflação para ser bem-sucedido, isto é, ter relação de sacrifício aceitável, precisa de uma imensa credibilidade e de uma ação governamental ampla, que fortaleça o processo competitivo. Se supusermos que a taxa de inflação corrente é a soma da "expectativa de inflação" com a diferença do PIB atual com relação ao PIB potencial (excesso de demanda) multiplicado por um parâmetro que caracteriza a estrutura da economia (em geral menor do que um), podemos entender facilmente o fenômeno. Assim, por exemplo, se a expectativa de inflação é da ordem de 7%, e queremos inflação de 5% dentro de determinado período e o parâmetro que multiplica a diferença entre o PIB corrente e o potencial é da ordem de 1/3, seria preciso criar, através da elevação da taxa de juro real, uma capacidade ociosa de 6%. Se, entretanto, a credibilidade do banco central fosse tal que pudesse (o que parece impossível) convencer a sociedade que a inflação será de 5%, não haveria necessidade de manobrar o juro real e cortar a produção e o emprego. O gráfico abaixo mostra a média móvel de 12 meses do IPCA desde o início do sistema de metas inflacionárias. O grande desvio (pontilhado) foi o período de agitação sucessória, quando a combinação da política fiscal (elevação do superávit primário de 3,25% para 4,25% do PIB e uma enérgica política monetária (elevação da Selic de 18% para 20,3%) trouxe a taxa de inflação de volta para a média anterior. Uma manobra realmente brilhante. Depois disso nada mais... A "relação de sacrifício" será grande e a valorização cambial deverá produzir um grande atraso na economia para trazer a taxa de inflação a 5,1% em 2005.