Título: Mercado livre de energia subsidia os grandes
Autor: Carlos Rodolfo Schneider
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2005, Opinião, p. A11

Regras dos leilões alimentam desequilíbrio concorrencial

Uma das leis fundamentais do capitalismo é a livre concorrência na disputa pelo mercado. O marco regulatório do setor elétrico aparenta caminhar nessa direção. Basta observarmos os fatos: graças ao excedente de energia, os primeiros leilões realizados pelas geradoras e comercializadoras, atraindo grandes consumidores para a contratação de energia elétrica a preços livremente negociados, foram um grande sucesso. A legislação ampara indústria, comércio e prestadoras de serviços, dentre outras atividades - desde que tenham demanda mínima contratada de 3 mil kW, sejam atendidos em tensão igual ou superior a 69 kV ou tenham solicitado ligação em qualquer tensão a partir de julho de 1995 - para migrar ao mercado livre, se assim o desejarem. Esses contratos de compra de energia prevêem preços mais atrativos do que as tarifas praticadas pelas distribuidoras, através do mercado regulado, além de garantirem o fornecimento por prazos não inferiores a cinco anos, em média. Os interessados têm sido principalmente os setores que mais dependem deste insumo e sobre os quais esse item impacta significativamente no custo final dos produtos. É justa a contratação de energia a preços mais baixos, principalmente quando esse insumo onera, e muito, a produção. A questão a avaliar é outra. Ficam fora dessa atraente perspectiva os consumidores que não atenderem aos critérios de enquadramento na condição de potencialmente livres. A esses pequenos e médios consumidores restam as opções de compra da energia elétrica produzida pelas distribuidoras, com tarifas reguladas, ou, para aqueles com demanda a partir de 500 kW, a aquisição de energia gerada por pequenas centrais hidrelétricas ou por fontes alternativas que, embora sejam empreendimentos recomendáveis do ponto de vista de impacto ambiental, ainda produzem um insumo mais caro e menos disponível ao mercado. Resultado: fica mantido, assim, um desequilíbrio concorrencial inclusive dentro de um mesmo ramo de atividade. Vejamos alguns exemplos: em Santa Catarina, no setor alimentício, uma ínfima parcela de consumidores, responsáveis por 9,3% do consumo, já está no mercado livre, enquanto que outras grandes empresas, detentoras de 42,7% do consumo do setor, são potencialmente livres para migrar. São pouco mais de uma dezena de grandes empresas, contra milhares de pequenas e médias que levam desvantagem na hora de comprar a sua energia. A mesma problemática ocorre no setor de produtos têxteis. Nesse caso, as empresas que detinham 16,7% do consumo já estão no mercado livre, enquanto que as responsáveis por 37% do consumo ainda podem migrar. Para acentuar esta distorção, os consumidores que migram ao mercado livre ficam desobrigados de participar do rateio de compra de energia da Itaipu Binacional, uma conta que embute um risco cambial e passa a sair somente do bolso dos cativos (aqueles consumidores que não migraram para o mercado livre). O mesmo se aplica ao rateio da Recomposição Tarifária Extraordinária (RTE), uma sobretarifa criada para recompor as perdas de faturamento e as despesas oriundas da energia comercializada no Mercado Atacadista de Energia durante a vigência do Programa de Racionamento de 2001. Mais uma vez, coube aos cativos suportar os ônus desta taxa, ainda embutida nas tarifas de energia.

O ressarcimento às concessionárias dos custos não gerenciáveis onera empresas sem acesso aos leilões

Os próprios subsídios aplicados sobre o custo da energia paga por determinados consumidores, como cooperativas de eletrificação rural e empresas públicas prestadoras de serviços de água, esgoto e saneamento, considerados justos pelo seu caráter social, agora são bancados apenas pelos cativos, desonerando os maiores consumidores de mais esta participação. A legislação de 1995, que norteia o setor elétrico em relação ao assunto, ampara essa distorção. Ao afirmar que "as tarifas das concessionárias envolvidas na opção do consumidor poderão ser revisadas para mais ou para menos quando a perda ou o ganho de mercado alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato", na prática a lei legitima a posição atual de novos reajustes levando em conta apenas o mercado cativo. Então não seria o caso de o governo criar mecanismos para ressarcir as concessionárias de custos não gerenciáveis, decorrentes da opção dos grandes consumidores pela compra de energia elétrica junto a outros fornecedores, em vez de transferi-los aos consumidores não livres? Esses argumentos podem ser somados ao fato de as grandes empresas estarem em condições muito mais vantajosas em seu mercado de atuação. Fazem o planejamento tributário para reduzir a carga de impostos, compram insumos mais baratos, dada sua escala de produção, e têm melhor acesso ao crédito. Em contrapartida, muitas empresas menores se defendem aderindo à informalidade. E como ficam aquelas pequenas e médias empresas que por princípios éticos não queiram apelar à desconformidade fiscal? Se, por um lado, o governo oferece subsídios de caráter social a algumas categorias de consumidores, isso não significa que, ao oferecer incentivos para fomentar o desenvolvimento econômico, esteja fazendo isso de forma justa. Isso porque, se aplicados somente a determinados agentes, como acontece na aquisição de energia elétrica, esses incentivos apenas acentuam a desigualdade já existente entre grandes e pequenas empresas. Então, o Brasil que precisa crescer a taxas maiores, também precisa de medidas concretas, como a eliminação das desigualdades concorrenciais. Sem isso, as pequenas e médias empresas, responsáveis por cerca de 60% dos empregos brasileiros, estarão à margem do sistema, impossibilitadas de avançar na sua função de impulsionar uma sociedade com melhor distribuição de renda, maior geração de empregos e menos desigualdade social.